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segunda-feira, 31 de julho de 2017

Princípios Elementares de Filosofia - As Leis da Dialética


TERCEIRA LEI: A CONTRADIÇÃO

I. — A vida e a morte.
II. — As coisas transformam-se na sua contrária.
III. — Afirmação, negação e negação da negação.
IV. — Recapitulemos.
V. — A unidade das contrárias.
VI. — Erros a evitar.
VII. — Consequências práticas da dialética.

Vimos que a dialética considera as coisas como estando em perpétua mudança, evoluindo continuamente, numa palavra, sofrendo um movimento dialético (1.ª Lei).
Este movimento é possível, porque toda e qualquer coisa não é mais do que o resultado, no momento em que a estudamos, de um encadeamento de processos, isto é, de fases que saem umas das outras. E, levando o nosso estudo mais adiante, vimos que esse encadeamento se desenvolve necessariamente no tempo num movimento progressivo, «apesar dos retrocessos momentâneos».
Chamamos a esse desenvolvimento um «desenvolvimento histórico» ou «em espiral», e sabemos que se gera a si mesmo, por autodinamismo.
Mas, quais são, agora, as leis do autodinamismo? Quais as que permitem às fases sair umas das outras?
Chamam-se as «leis do movimento dialético».
A dialética ensina-nos que as coisas não são eternas: têm um começo, uma maturidade, uma velhice, que termina num fim, a morte.
Todas as coisas passam por essas fases: nascimento, maturidade, velhice, fim. Por que acontece assim? Por que não são as coisas eternas?
Eis uma velha pergunta que sempre apaixonou a humanidade. Por que é preciso morrer? Não se compreende esta necessidade, e os homens, no decurso da história, sonharam com a vida eterna, com os meios de mudar tal estado de coisas, na idade média, por exemplo, inventando bebidas mágicas (elixires de juventude ou da vida).
Por que é que o que nasce é, portanto, obrigado a morrer? Eis uma grande lei da dialética, que deveremos confrontar, para bem a compreender, com a metafísica.

1— A vida e a morte.
Do ponto de vista metafísico, consideram-se as coisas de um modo isolado, tomadas em si mesmas, e, porque a metafísica as estuda assim, considera-as de uma maneira unilateral, isto é, de um só lado. É por isso que se pode dizer, dos que as vêem de um só lado, que são metafísicos. Em poucas palavras, quando um metafísico examina o fenômeno a que se chama vida, fá-lo sem o relacionar a qualquer outro. Vê a vida, por
si e em si, de uma maneira unilateral. Vê-a de um só lado. Se examinar a morte, fará a mesma coisa; aplicará o seu ponto de vista unilateral, e concluirá dizendo: a vida é a vida, a morte é a morte. Entre ambas, nada de comum; não se pode estar ao mesmo tempo vivo e morto, porque são duas coisas opostas, inteiramente contrárias uma à outra.
Ver assim as coisas, é fazê-lo de uma maneira superficial. Se as examinarmos um pouco mais de perto, veremos, primeiro, que não as podemos opor uma à outra, não podemos mesmo separá-las tão brutalmente, uma vez que a experiência e a realidade nos mostram que a morte continua a vida, que a morte vem do vivo.
E a vida, pode sair da morte? Sim. Porque os elementos do corpo morto vão transformar-se para dar origem a outras vidas e servir de adubo à terra, que será mais fértil, por exemplo. A morte, em muitos casos, auxiliará a vida, permitirá a esta nascer; e, nos próprios corpos vivos, a vida só é possível porque há uma contínua substituição das células que morrem por outras que nascem53.
Portanto, a vida e a morte transformam-se continuamente uma na outra, e, em todas as coisas, constatamos a constância desta grande lei: por toda a parte, as coisas transformam-se na sua contrária.

II. — As coisas transformam-se na sua contrária.
Os metafísicos opõem as contrárias, mas, a realidade demonstra-nos que estas se transformam uma na outra, que as coisas não permanecem elas próprias, se transformam nas suas contrárias.
Se examinarmos a verdade e o erro, pensamos: não há nada de comum entre eles. A verdade é a verdade, um erro é um erro. Este o ponto de vista unilateral, que opõe brutalmente as duas contrárias, como se oporia a vida e a morte.
E, todavia, se dizemos: «Olha, chove!», acontece que, por vezes, ainda não acabamos de o dizer e já não chove. Essa frase era exata, quando a começamos, e transformou-se em erro. (Os Gregos já tinham constatado isso, e diziam que, para não errar, era preciso não dizer nada!)
Do mesmo modo, retomemos o exemplo da maçã. Vê-se na terra uma maçã madura, e diz-se: «Eis uma maçã madura». Contudo, estando na terra há um certo tempo, já começa a decompor-se, de tal forma que a verdade se transforma em erro.
Também as ciências nos dão numerosos exemplos de leis consideradas, durante muitos anos, como «verdades», que se revelaram, num dado momento, após os progressos científicos, como «erros».
Vemos, portanto, que a verdade se transforma em erro. Mas, será que o erro se transforma em verdade?
No início da civilização, os homens imaginavam, sobretudo no Egipto, combates entre os deuses, para explicar o nascer e o pôr do sol; era um erro, na medida em que se dizia que os deuses empurravam ou  puxavam o sol, para o fazer mover. Mas, a ciência dá parcialmente razão a esse raciocínio, dizendo que há, efetivamente, forças (puramente físicas, aliás) que fazem mover o sol. Veremos, pois, que o erro não está
nitidamente oposto à verdade.
Se, portanto, as coisas se transformam na sua contrária, como é isso possível? Como se transforma a vida na morte?
Se houvesse apenas vida, a vida cem por cento, ela nunca poderia ser a morte, e se a morte fosse totalmente ela própria, a morte cem por cento, seria impossível que uma se transformasse na outra. Mas, já existe morte na vida e, por conseguinte, vida na morte.
Observando de perto, veremos que um ser vivo é composto de células, que estas se renovam, desaparecem e reaparecem no mesmo lugar. Vivem e morrem continuamente num ser vivo, onde existe, portanto, vida e morte.
Sabemos, também, que a barba de um morto continua a crescer. O mesmo acontece com as unhas e os cabelos. Eis fenômenos nitidamente caracterizados, que provam que a vida continua na morte.
Na Rússia, conserva-se, em condições especiais, sangue de cadáveres, que serve para fazer transfusões: assim, com o sangue de um morto, refaz-se um vivo. Podemos dizer que, por conseguinte, no seio da morte há a vida.
A vida é, pois, igualmente uma contradição «existente nas coisas e nos fenômenos em si», uma contradição que, constantemente, se apresenta e resolve; logo que a contradição cessa, a vida cessa também, intervém a morte54.
Assim, as coisas não só' se transformam umas nas outras, mas, ainda, uma coisa não é apenas ela própria, mas outra que é a sua contrária, porque cada coisa contém a sua contrária.
Toda a coisa é, ao mesmo tempo, ela própria e a sua contrária.
Se se representa uma coisa por um círculo, teremos uma força que a impelirá para a vida, empurrando do centro para o exterior, por exemplo (expansão); mas teremos, também, forças que a impelirão numa direção oposta, forças de morte, empurrando do exterior para o centro (compressão).
Assim, no interior de cada coisa, coexistem forças opostas, antagonismos.
Que se passa entre essas forças? Lutam. Por conseguinte, uma coisa não é apenas movida por uma força agindo num só sentido, mas toda a coisa é, realmente, movida por duas forças de direções opostas. Para a afirmação e para a negação das coisas, para a vida e para a morte. Que significa: afirmação e negação das coisas?
Existem, na vida, forças que a mantêm, que tendem para a sua afirmação. Além dessas, também existem nos organismos outras que tendem para a negação. Em todas as coisas, há forças que tendem para a afirmação e outras para a negação, e, entre a afirmação e a negação, contradição.
Portanto, a dialética constata a mudança; mas, por que mudam as coisas? Porque não estão de acordo consigo próprias, porque há luta entre as forças, entre os antagonismos internos, porque há contradição. Eis a terceira lei da dialética: As coisas mudam, porque contêm em si mesmas a contradição.
(Se somos obrigados, por vezes, a empregar palavras mais ou menos complicadas (como dialética, autodinamismo, etc.) ou termos que parecem contrários à lógica tradicional e difíceis de compreender, não é pelo prazer de complicar às coisas, e, nisso, imitar a burguesia. Não. Mas, este estudo, embora elementar, pretende ser tão completo quanto possível e permitir ler, em seguida, mais facilmente, as obras filosóficas de Marx-Engels e Lenine, que empregam esses termos. Em todo o caso, uma vez que devemos empregar uma linguagem que não é usual, procuraremos, no âmbito deste estudo, torná-la compreensível a todos.)

III. — Afirmação, negação e negação da negação.
É necessário fazermos, aqui, uma distinção entre o que se chama a contradição verbal —que significa responder «não», quando alguém vos diz «sim» — e a que acabamos de ver, a chamada contradição dialética, isto é, nos fatos, nas coisas.
Quando falamos da contradição que existe no seio da sociedade capitalista, isso não significa que, sobre certas teorias, uns dizem sim, outros não; quer dizer que há uma contradição nos fatos, forças reais que se combatem: primeiro, uma força que tende a afirmar-se, é a classe burguesa que procura manter-se; depois, uma segunda força social que tende para a negação da classe burguesa, é o proletariado. A contradição está, pois, nos fatos, porque a burguesia não pode existir sem criar a sua contrária, o proletariado. Como disse Marx, “antes de tudo» a burguesia produz os seus próprios coveiros55.
Para impedir isso, seria necessário que a burguesia renunciasse a ser ela própria, o que seria absurdo. Por conseguinte, afirmando-se, criou a sua própria negação.
Tomemos o exemplo de um ovo que é posto e chocado por uma galinha: constatamos que, nele, se encontra o germe que, a uma certa temperatura e em certas condições, se desenvolve. Desenvolvendo-se, dará um pintinho: deste modo, o germe é já a negação do ovo. Veremos que, sem dúvida, no ovo há duas forças: a que tende para que permaneça um ovo e a que tende a que se torne pintinho. O ovo está, portanto, em desacordo consigo próprio, e todas as coisas o estão consigo mesmas.
Isto pode parecer difícil de compreender, porque estamos habituados ao modo de raciocinar metafísico, e é por isso que devemos fazer um esforço para nos habituar a ver, novamente, as coisas na sua realidade.
Uma coisa começa por ser uma afirmação que sai da negação. O pintinho é uma afirmação resultante da negação do ovo. É esta uma fase do processo.
Mas a galinha será, por sua vez, a transformação do pintinho, havendo, no centro desta transformação, uma contradição entre as forças que lutam para que o pintinho se torne galinha e as que lutam para que permaneça pintinho. A galinha será, pois, a negação do pintinho, que vinha, por sua vez, da negação do ovo.
A galinha será, por conseguinte, a negação da negação. E isso é a marcha geral das fases da dialética.
1. Afirmação diz-se também Tese.
2. Negação ou Antítese.
3. Negação da negação ou Síntese.
Estas três palavras resumem o desenvolvimento dialético. Empregam-se para representar o encadeamento das fases, para indicar que cada uma é a destruição da precedente.
A destruição é uma negação. O pintinho é a negação do ovo, uma vez que, nascendo, o destrói. A espiga de trigo é, da mesma maneira, a negação do grão de trigo. O grão, na terra, germinará; essa germinação é a negação do grão de trigo, que dará a planta, que, por sua vez, florirá e dará uma espiga; esta será a negação da planta ou a negação da negação.
Vemos, pois, que a negação de que fala a dialética é uma maneira resumida de falar da destruição. Há a negação do que desaparece, do que é destruído.
1. O feudalismo foi a negação do escravagismo.
2. O capitalismo é a negação do feudalismo.
3. O socialismo é a negação do capitalismo.
Assim como para a contradição, em que fizemos uma distinção entre contradição verbal e lógica, devemos compreender bem o que é a negação verbal, que diz «não», e a dialética, que quer dizer «destruição».
Mas, se a negação significa destruição, não se trata de qualquer destruição, mas de uma destruição dialética.
Assim, quando esmagamos uma pulga, ela não morre por destruição interna, por negação dialética. A sua destruição não é o resultado de fases autodinâmicas; é o de uma mudança puramente mecânica.
A destruição só é uma negação se for um produto da afirmação, se dela sair. Assim: o ovo chocado, sendo a afirmação do que o ovo é, origina a sua negação - torna-se pintinho, e este simboliza a destruição ou negação do ovo, rompendo, destruindo a casca.
No pintinho, vemos duas forças adversas: «pintinho» e «galinha»; no decurso deste desenvolvimento do processo, a galinha porá ovos, nova negação da negação. Destes, partirá, então, um novo encadeamento do processo.
Para o trigo, vemos, também, uma afirmação, depois, uma negação e uma negação da negação.
Como outro exemplo, daremos o da filosofia materialista.
No início, encontramos um materialismo primitivo, espontâneo, que, por ignorante, cria a sua própria negação: o idealismo. Mas este, negando o antigo materialismo, será negado pelo moderno ou dialético, porque a filosofia se desenvolve e provoca, com as ciências, a destruição do idealismo. Também aqui, portanto, temos; afirmação, negação e negação da negação.
Constatamos, igualmente, tal ciclo na evolução da sociedade.
Verificamos, no começo da história, a existência de uma sociedade de comunismo primitivo, sem classes, baseada na propriedade comum do solo. Mas, tal forma de propriedade torna-se um entrave ao desenvolvimento da produção, criando, por isso mesmo, a sua própria negação: a sociedade com classes, baseada na propriedade privada e na exploração do homem pelo homem. Mas, essa sociedade traz também
consigo a sua própria negação, porque um desenvolvimento superior dos meios de produção leva à necessidade de negar a divisão da sociedade em classes, a propriedade privada, e regressamos, assim, ao ponto de partida: a necessidade da sociedade comunista, mas num outro plano; no início, tínhamos uma falta de produtos; hoje, temos uma capacidade de produção muito elevada.
Observamos, a este respeito, por todos os exemplos que demos, que regressamos sempre ao ponto de partida, mas num outro plano (desenvolvimento em espiral), um plano mais elevado.
Vemos, pois, que a contradição é uma grande lei da dialética. Que a evolução é uma luta de forças antagonistas. Que não só as coisas se transformam umas nas outras, mas, também, cada uma na sua contrária.
Que as coisas não estão de acordo consigo próprias, porque há, nelas, luta entre forças opostas, uma contradição interna.
Nota. Devemos prestar bem atenção a isto: a afirmação, a negação, a negação da negação são apenas expressões resumidas das várias fases da evolução dialética, não sendo preciso correr mundo para encontrar essas três fases por toda a parte. É certo que não as encontraremos sempre todas; mas, por vezes, só a primeira ou a segunda, não estando a evolução terminada, É desnecessário, pois, querer ver, mecanicamente, em todas as coisas, essas mudanças tal qual. Fixemos, sobretudo, que a contradição é a grande lei da dialética. É o essencial.

IV. — Recapitulemos.
Sabemos já que a dialética é um método de pensar, raciocinar, analisar, que permite fazer boas observações e estudar bem, porque nos obriga a procurar a origem das coisas e a descrever a história.
Certamente, o antigo método de pensar, vimo-lo, teve a sua necessidade no seu tempo. Mas, estudar com o método dialético é constatar, repetimo-lo, que todas as coisas, na aparência imóveis, são apenas um encadeamento de processos onde tudo tem um começo e um fim, onde em tudo, finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e retrocessos momentâneo um desenvolvimento progressivo acaba por se fazer hoje56.
Só a dialética nos permite compreender o desenvolvimento, a evolução das coisas; só ela nos permite compreender a destruição das antigas e o nascimento das novas. Só a dialética nos faz compreender todos os desenvolvimentos nas suas transformações, conhecendo-os como todos formados de contrárias. Porque, para a concepção dialética, o desenvolvimento natural das coisas, a evolução, é uma luta contínua de forças e princípios opostos.
Assim, pois, para a dialética, a primeira lei é a constatação do movimento e da mudança: «Nada permanece o que é, nada fica onde está» (Engels). Sabemos, agora, que a explicação desta lei reside em que as coisas mudam, não só transformando-se umas nas outras, mas, também, nas suas contrárias. A contradição é, portanto, uma grande lei da dialética.
Estudamos o que é, do ponto de vista dialético, a contradição, mas é necessário insistir ainda, para fazer certas precisões e, também, para assinalar alguns erros que é preciso não cometer.
É bem certo que, primeiro, é necessário familiarizarmo-nos com esta afirmação, que está de acordo com a realidade: a transformação das coisas nas suas contrárias. Certamente, ela fere o entendimento, admira-nos, porque estamos habituados a pensar com o velho método metafísico. Mas, vimos porque é assim; vimos, de uma maneira detalhada, por meio de exemplos, que isso está na realidade e porquê as coisas se transformam nas suas contrárias.
É por isso que se pode dizer e afirmar que, se as coisas se transformam, mudam, evoluem, é porque estão em contradição com elas próprias, trazem em si a sua contrária, contêm a unidade das contrárias.

V. — A unidade das contrárias.
Cada coisa é uma unidade de contrárias.
Afirmar isso parece, à primeira vista, um absurdo. «Uma coisa e a sua contrária nada têm de comum», eis o que se pensa em geral. Mas, para a dialética, toda a coisa é, ao mesmo tempo, ela própria e a sua contrária, uma unidade de contrárias, e é preciso explicar bem isso.
A unidade das contrárias, para um metafísico, é uma coisa impossível: Para ele, as coisas são feitas de uma só peça, de acordo com elas próprias, e eis que afirmamos o contrário, ao saber que são feitas de duas peças — elas próprias e as suas contrárias — e que nelas há duas forças que se combatem, porque as coisas não estão de acordo com elas próprias, se contradizem a si mesmas.
Se tomarmos o exemplo da ignorância e da ciência, isto é, do saber, sabemos que, do ponto de vista metafísico, são duas coisas totalmente opostas e contrárias uma à outra. O que é ignorante não é um sábio, e o que é um sábio não é um ignorante,
No entanto, se olharmos os fatos, vemos que não dão lugar a uma oposição tão rígida. Vemos que, primeiramente, reinou a ignorância, depois é que veio a ciência; e, aí, verificamos que uma coisa se transforma na sua contrária: a ignorância em ciência.
Não há ignorância sem ciência, não há ignorância cem por cento. Um indivíduo, por muito ignorante que seja, sabe reconhecer, pelo menos, os objetos, a sua alimentação; não há nunca ignorância absoluta; existe sempre uma percentagem de ciência na ignorância. A ciência está já, em germe, na ignorância; é, pois, justo afirmar que a contrária de uma coisa está na coisa em si.
Vejamos, agora, a ciência. Pode haver ciência cem por cento? Não. Ignora-se sempre qualquer coisa. Disse Lenine: «O objeto do conhecimento é inesgotável»; o que significa que há sempre que aprender. Não há ciência absoluta. Todo o saber, toda a ciência contém uma parte de ignorância57.
O que  existe, na realidade, é uma ignorância e uma ciência relativas, uma mistura de ambas.
Não é, portanto, a transformação das coisas nas suas contrárias que constatamos neste exemplo, mas, é, na mesma coisa, a existência das contrárias ou a unidade das contrárias.
Poderíamos retomar os exemplos que já vimos: a vida e a morte, a verdade e o erro, e constataríamos que, num e noutro caso, como em todas as coisas, existe uma unidade das contrárias, isto é, que cada uma contém, ao mesmo tempo, ela própria e a sua contrária. É por isso que Engels dirá: Se, na pesquisa, nos inspirarmos constantemente neste ponto de vista, deixa-se, de uma vez para sempre, de procurar soluções definitivas e verdades eternas; tem-se sempre consciência do caráter necessariamente limitado de todo o conhecimento adquirido, da sua dependência acerca das condições nas quais foi adquirido; não mais deixar-se iludir pelas antinomias, irredutíveis para a velha metafísica sempre em uso, do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, do idêntico e do diferente, do fatal e do fortuito; sabe-se que
estas têm apenas um valor relativo, que o que é conhecido agora como verdadeiro tem o seu lado falso escondido, que aparecerá mais tarde, assim como o que é atualmente reconhecido como falso tem o seu lado verdadeiro, graças ao qual pôde, anteriormente, ser considerado como verdadeiro58.
Este texto de Engels mostra-nos bem como é preciso compreender a dialética e o sentido verdadeiro da unidade das contrárias.

VI. — Erros a evitar.
É preciso explicar bem essa grande lei da dialética que é a contradição, para não criar mal-entendidos.
Primeiro, é-nos necessário compreendê-la de uma maneira mecânica. É desnecessário pensar que, em todo o conhecimento, existe a verdade mais o erro, ou o verdadeiro mais o falso.
Se se aplicasse essa lei assim, dar-se-ia razão aos que dizem que, em todas as opiniões, há uma parte de verdadeiro mais uma parte de falso, e que: «retiremos o que é falso, ficará o verdadeiro, o que é bom». Diz-se isso em certos meios pretensamente marxistas, em que se pensa que o marxismo tem razão em mostrar que, no capitalismo, há fábricas, monopólios, bancos que têm nas mãos a vida econômica, que têm razão para dizer que esta caminha mal; mas, o que é falso no marxismo, acrescente-se, é a luta de classes: deixemos de lado a teoria da luta de classes, e teremos uma boa doutrina. Diz-se, também, que o marxismo, aplicado ao estudo da sociedade, é justo, verdadeiro, «mas, para quê misturar-lhe a dialética? Eis o lado falso, retiremos esta, e guardemos como verdadeiro o resto do marxismo!».
São estas interpretações mecânicas da unidade das contrárias.
Eis, ainda, um outro exemplo: Proudhon pensava, depois de ter tomado conhecimento da teoria das contrárias, que, em cada coisa, havia um lado bom e outro mau. Também, ao constatar que, na sociedade, existe a burguesia e o proletariado, dizia: Retiremos o que é mau: o proletariado! E é assim que põe de pé o seu sistema de créditos, que deviam criar a propriedade parcelar, isto é, permitir aos proletários tornar-se proprietários; dessa maneira, só haveria burgueses, e a sociedade seria boa.
Sabemos bem, no entanto, que não há proletariado sem burguesia e que esta só existe pelo proletariado: são duas contrárias inseparáveis. Tal unidade é interna, verdadeira: é uma união inseparável. Não basta, pois, para as suprimir, separar uma da outra. Numa sociedade baseada na exploração do homem pelo homem, existem, obrigatoriamente, duas classes antagônicas: amos e escravos, na antiguidade, senhores e servos, na idade média, burguesia e proletariado, nos nossos dias.
Para suprimir a sociedade capitalista, criar a sociedade sem classes, é preciso suprimir a burguesia e o proletariado — para permitir aos homens livres criar uma sociedade mais evoluída, material e intelectualmente, para caminhar para o comunismo na sua forma superior, e não para, como pretendem os adversários, criar um comunismo «igualitário na miséria».
Devemos, portanto, prestar bem atenção quando explicamos ou aplicamos, a um exemplo ou a um .estudo, a unidade das contrárias. Devemos evitar querer, em tudo e sempre, encontrar e aplicar mecanicamente, por exemplo, a negação da negação, a unidade das contrárias, porque os nossos conhecimentos são, em geral, muito limitados, e isso pode levar-nos a situações críticas.
O que conta é o princípio: a dialética e as suas leis obrigam-nos a estudar as coisas para descobrir a evolução e as forças, as contrárias que determinam essa evolução. É-nos preciso, pois, estudar a unidade das contrárias contida nas coisas, e esta equivale a dizer que uma afirmação não é nunca uma afirmação absoluta, uma vez que contém, em si mesma, uma parte de negação. E isso é o essencial: é por as coisas conterem a sua própria negação que se transformam. A negação é o «dissolvente»: se não existisse, as coisas não mudariam. Como, de fato, estas se transformam, é preciso, na verdade, que contenham um princípio dissolvente. Podemos, de antemão, afirmar que existe, uma vez que vemos as coisas evoluir,
mas, não podemos descobrir tal princípio sem um estudo minucioso da própria coisa, porque ele não tem o mesmo aspecto em todas as coisas.

VII. — Consequências práticas da dialética.
Praticamente, portanto, a dialética obriga-nos a considerar sempre, não apenas um lado das coisas, mas ambos: não considerar nunca a verdade sem o erro, a ciência sem a ignorância. O grande erro da metafísica é, justamente, considerar só um dos seus lados, julgar de uma maneira unilateral, e se cometemos muitos erros é sempre na medida em que vemos apenas um lado das coisas, é porque temos, muitas vezes,
raciocínios unilaterais.
Se a filosofia idealista afirma que o mundo existe só nas ideias dos homens, é preciso reconhecer que há, com efeito, coisas que não existem senão no nosso pensamento. Isso é verdade. Mas o idealismo é unilateral, vê apenas esse aspecto. Vê só o homem que inventa coisas que não estão na realidade, e, daí, conclui que nada existe fora das nossas ideias. O idealismo tem razão em sublinhar essa faculdade do homem, mas, aplicando apenas o critério da prática, não vê senão isso.
O materialismo metafísico também se engana, porque vê apenas um lado dos problemas. Vê o universo como uma mecânica. A mecânica existe? Sim! Desempenha um papel importante? Sim! O materialismo metafísico tem, pois, razão em afirmar isso, mas, é um erro ver o movimento mecânico.
Naturalmente, somos levados a ver um só lado das coisas e das pessoas. Se julgamos um camarada, vemos, quase sempre, apenas o seu lado bom ou o mau. É preciso ver um e outro, sem o que não seria possível ter quadros nas organizações. Na prática política, o método do julgamento unilateral leva ao sectarismo. Se encontramos um adversário pertencente a uma organização reacionária, julgamo-lo segundo os seus chefes.
E, no entanto, não é mais, talvez, que um modesto empregado revoltado, descontente, e não o devemos julgar como a um importante patrão fascista. Pode, da mesma maneira, aplicar-se este raciocínio aos patrões, e compreender que, se nos parecem maus, é, muitas vezes, porque eles próprios são dominados pela estrutura da sociedade, e que, noutras condições sociais, seriam, talvez, diferentes.
Se atendermos à unidade das contrárias, consideraremos as coisas sob os seus múltiplos aspectos. Veremos, portanto, que esse reacionário é reacionário, por um lado, mas, por outro, é um trabalhador, havendo nele uma contradição. Investigando, verificaremos porque aderiu a essa organização, procurando, ao mesmo tempo, indagar porque deveria não ter aderido. E, então, julgaremos e discutiremos, assim, de uma maneira menos sectária.
Devemos, pois, de acordo com a dialética, considerar as coisas sob todos os ângulos que se lhe possam distinguir.
Para resumir, e como conclusão teórica, diremos: as coisas mudam, porque encerram uma contradição interna (elas próprias e as suas contrárias). As contrárias estão em conflito, e as mudanças nascem desses conflitos; assim, a mudança é a solução do conflito.
O capitalismo contém esta contradição interna, esse conflito entre o proletariado e a burguesia; a mudança explica-se por tal conflito, e a transformação da sociedade capitalista em socialista é a sua supressão.
Há mudança, movimento, onde haja contradição. Esta é a negação da afirmação, e quando o terceiro termo, a negação da negação, se alcança, aparece a solução, porque, nesse momento, a razão da contradição é eliminada, ultrapassada.
Pode, pois, dizer-se que, se as ciências: a química, a física, a biologia, etc., estudam as leis da mudança que lhes são particulares, a dialética estuda as mais gerais. Engels disse: A dialética é apenas a ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana o do pensamento59.

53 «Enquanto consideramos as coisas como em repouso e sem vida, cada uma por si, uma ao lado e após a outra, não nos apercebemos, certamente, de qualquer contradição entre elas. Encontramos certas propriedades que são, em parte, comuns, em parte, diversas, até contraditórias, mas que, neste caso, são repartidas por coisas diferentes, não contendo, portanto, contradição em si mesmas. Nos limites deste domínio de observação, ficamo-nos pelo modo de pensar corrente, o metafísico. Mas procederemos de maneira diferente, se considerarmos as coisas nos seus movimento, mudança, vida, ação recíproca uma sobre a outra. Aí, caímos imediatamente nas contradições.» (Fríedrích ENGELS: «Anti-Duhring»)
54 Friedrich ENGELS: «Anti-Duhring»
55 Karl MARX e Friedrich ENGELS: «Manifesto do Partido comunista», Ed. Avante
56 Friedridh ENGELS, «Ludwig Feuerbach»
57 «A história das ciências é a da eliminação progressiva do erro, isto é, da sua substituição por um erro novo, mas cada vez menos absurdo.» (ENGELS)
58 Friedrich ENGELS: «Ludwig Feuerbach»

LEITURAS
ENCELS: «Anti-Dühring», capítulo XIII: Dialética. Negação da negação, p. 161. Capítulo XIV: Conclusão, p. 175.
LÉNINE: «Karl Marx e a sua doutrina»: A dialética.


Próximo:  QUARTA E ÚLTIMA LEI: TRANSFORMAÇÃO DA QUANTIDADE EM QUALIDADE OU LEI DO PROGRESSO POR SALTOS

domingo, 30 de julho de 2017

Maduro exerce o voto em eleições constituintes

Caracas 30 jul (Prensa Latina) O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, exerceu seu direito ao voto nas eleições que se desenvolvem hoje na Venezuela para eleger 537 de 545 membros da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).

Princípios Fundamentais de Filosofia - As Leis da Dialética


SEGUNDA LEI: A AÇÃO RECÍPROCA

I. — O encadeamento dos processos.
II. — As grandes descobertas do século XIX.
1. A descoberta da célula viva e do seu desenvolvimento
2. A descoberta da transformação da energia.
3. A descoberta da evolução no homem e nos animais.
III. — O desenvolvimento histórico ou em espiral.
IV. — Conclusão.

I. — O encadeamento dos processos.
Acabamos de ver, a propósito da história da maçã, o que é um processo. Retomamos esse exemplo.
Procuramos de onde vinha a maçã, e devemos, nas nossas pesquisas, chegar até à árvore. (Mas, o problema de pesquisa põe-se, também, para esta. O estudo da maçã conduz-nos ao das origens e dos destinos da árvore. De onde vem? Da maçã. De uma maçã que caiu, apodreceu na terra para dar origem a um rebento, e isto leva-nos a estudar o terreno, as condições em que as sementes puderam dar um rebento, as influências do ar, do sol, etc. Assim, partindo do estudo da maçã, somos conduzidos ao exame do solo, passando do processo da maçã ao da árvore; este processo encadeia-se, por sua vez, no do solo. Temos o que se chama: «um encadeamento de processos». Isto vai-nos permitir enunciar e estudar a segunda lei da dialética: a lei
da ação recíproca. Tomemos como exemplo de encadeamento de processos, depois do da maçã, o da Universidade Operária de Paris.
Se estudarmos esta escola do ponto de vista dialético, procuraremos de onde vem, e teremos, inicialmente, uma resposta: no outono de 1932, camaradas reunidos decidiram fundar em Paris uma Universidade Operária para estudar o marxismo.
Mas como teve esse comitê a ideia de fazer estudar o marxismo? Foi, evidentemente, porque ele existe. Mas, então, de onde vem o marxismo?
Vemos que a pesquisa do encadeamento dos processos nos conduz a estudos minuciosos e completos. Mais ainda: indagando de onde vem o marxismo, seremos levados a constatar que essa doutrina é a própria consciência do proletariado; vemos, pois, (seja-se por ou contra o marxismo) que o proletariado existe; e, então, poremos, de novo, a pergunta: de onde vem o proletariado?
Sabemos que de um sistema econômico: o capitalismo. Sabemos que a divisão da sociedade em classes, a luta de classes, não nasceu, como o pretendem os nossos adversários, do marxismo, mas, pelo contrário, que este constata a existência de tal luta, e colhe a sua força no proletariado já existente.
Portanto, de processo em processo, chegamos ao exame das condições de existência do capitalismo. Temos, assim, um encadeamento de processos, que nos demonstra que tudo influi sobre tudo. É a lei da ação recíproca.
Em conclusão destes dois exemplos, o da maçã e o da Universidade Operária de Paris, vemos como teria procedido um metafísico.
No exemplo da maçã, apenas poderia pensar «de onde vem a maçã?». E sentir-se-ia satisfeito com a resposta: «a maçã vem da árvore». Ficar-se-ia por aí.
Para a Universidade Operária, ficaria satisfeito por dizer, da sua origem, que foi fundada por um grupo de homens que querem «corromper o povo francês» ou outras banalidades...
Mas o dialético, esse vê todos os encadeamentos de processos, que terminam, conforme os casos, na maçã e na Universidade Operária. O dialético liga o fato particular, o detalhe ao conjunto.
Associa a maçã à árvore, e vai mais longe, até à natureza no seu conjunto. A maçã não é só o fruto da macieira, mas, também, o de toda a natureza.
A Universidade Operária não é apenas o «fruto» do proletariado, mas, também, o da sociedade capitalista.
Vemos, portanto, que, contrariamente ao metafísico, que concebe o mundo como um conjunto de coisas congeladas, o dialético verá o mundo como um conjunto de processos. E, se o ponto de vista dialético é verdadeiro para a natureza e para as ciências, é-o, também, para a sociedade.
O antigo método de pesquisa e de pensamento, a que Hegel chama o método metafísico, e que se ocupava, de preferência, do estudo das coisas consideradas na qualidade da objetos fixos dados... tinha, então, a sua grande justificação histórica49.
Por conseguinte, estudava-se, nessa época, todas as coisas e a sociedade como um conjunto de «objetos fixos dados», que não só não mudam, mas, particularmente para a sociedade, não estão destinados a desaparecer.
Engels assinala a importância capital da dialética, essa grande ideia fundamental segundo a qual o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas
acabadas, mas como um complexo de processos em que as coisas, na aparência estáveis, do mesmo modo que os seus reflexos intelectuais no nosso cérebro, as ideias, passam por uma mudança ininterrupta de devir e decadência, em que, finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e retrocessos momentâneos, um
desenvolvimento progressivo acaba por se fazer hoje50.
Nem mesmo a sociedade capitalista deve, pois, ser considerada como um «complexo de coisas acabadas», mas, pelo contrário, ser estudada, também, como um complexo de processos.
Os metafísicos dão-se conta de que a sociedade capitalista não existiu sempre, e dizem que tem uma história, mas pensam que, com a sua aparição, a sociedade acabou de evoluir e ficará, doravante, «fixa». Consideram todas as coisas como acabadas, e não como o início de um novo processo. O relato da criação do mundo por Deus é uma explicação do mundo como complexo de coisas acabadas. Deus executou uma tarefa acabada em cada dia. Fez as plantas, os animais, o homem de uma vez para sempre; daí a teoria do fixismo.
A dialética pensa de uma maneira oposta. Não considera as coisas na qualidade de «objetos fixos», mas em «movimento». Para ela, nenhuma coisa se encontra acabada; é sempre o fim de um processo e o começo de um outro, sempre em vias de se transformar, desenvolver. É por isso que estamos tão seguros da transformação da sociedade capitalista em socialista. Nada estando definitivamente acabado, a sociedade capitalista é o fim de um processo ao qual sucederá a socialista, depois a comunista, e assim sucessivamente; há e haverá continuamente um desenvolvimento.
Mas, aqui, é preciso ter em atenção que a dialética não deve ser considerada como qualquer coisa de fatal, de onde se poderia concluir: «uma vez que estais tão seguros da mudança que desejais, por que lutais?».
Porque, como disse Marx, «para fazer dar à luz a sociedade socialista, será preciso um parteiro»; de onde a necessidade da revolução, da ação.
É que as coisas não são tão simples. É preciso não esquecer o papel dos homens que podem acelerar ou retardar essa transformação (tornaremos a ver este assunto no capítulo V desta parte, quando falarmos do «materialismo histórico»).
O que constatamos atualmente é a existência, em todas as coisas, do encadeamento de processos que se produzem pela força interna daquelas (o autodinamismo). É que, para a dialética, insistimos nisso, nada está acabado. É necessário considerar o desenvolvimento das coisas como não tendo nunca cena final. No fim de uma peça de teatro do mundo, começa o primeiro ato de uma outra. Para dizer a verdade, ele começa já no último da peça precedente...

II. — As grandes descobertas do século XX.
O que determinou o abandono do espírito metafísico, e obrigou os sábios, depois de Marx e Engels, a considerar as coisas no seu movimento dialético, foi, sabemo-lo, as descobertas feitas no século XIX. São, sobretudo, três grandes descobertas dessa época, assinaladas por Engels, em «Ludwig Feuerbach», que fizeram progredir a dialéctica51.
1. A descoberta da célula viva e do seu desenvolvimento.52
Antes desta descoberta, tomara-se como base de raciocínio o «fixismo». As espécies eram consideradas como estranhas umas às outras. Além disso, distinguia-se, categoricamente, de um lado, o reino animal, do outro, o vegetal.
Depois dessa descoberta, foi possível precisar a ideia da «evolução», que os pensadores e sábios do século XVIII tinham já ventilado. Ela permite compreender que a vida é feita de uma sucessão de mortes e nascimentos, e que todo o ser vivo é uma associação de células. Pelo que esta constatação não deixa subsistir qualquer fronteira entre animais e plantas, e, assim, afasta a concepção metafísica.
2. A descoberta da transformação da energia .
Outrora, a ciência acreditava que o som, o calor, a luz, por exemplo, eram completamente estranhos uns aos outros. Ora, descobre-se que todos esses fenômenos se podem transformar uns nos outros, que há encadeamentos de processos, tanto na matéria inerte como na natureza viva. Tal revelação é, ainda, um golpe aplicado no espírito metafísico.
3. A descoberta da evolução no homem e nos animais .
Darwin, disse Engels, demonstra que todos os produtos da natureza são o resultado de um longo processo de desenvolvimento de pequenos germes, unicelulares na origem: tudo é o produto de um longo processo, tendo por origem a célula.
E Engels conclui que, graças a essas três grandes descobertas, podemos seguir o encadeamento de todos os fenômenos da natureza, não só no interior dos diferentes domínios, mas, também, entre eles.
Foram, pois, as ciências que permitiram o enunciado desta segunda lei da ação recíproca.
Entre os reinos vegetal, animal e mineral, nada de separações, apenas processos; tudo se encadeia. Isso também é verdade para a sociedade. As diferentes sociedades que atravessaram a história dos homens devem ser consideradas como uma sequência de encadeamentos de processos, em que cada uma saiu, necessariamente, da que a precedeu.
Devemos, portanto, fixar que: a ciência, a natureza, a sociedade devem ser vistas como um encadeamento de processos, e o motor que trabalha para desenvolver tal encadeamento é o autodinamismo.

III.— O desenvolvimento histórico ou em espiral.
Se examinarmos um pouco mais de perto o processo que começamos a conhecer, vemos que a maçã é o resultado de um encadeamento de processos. De onde vem a maçã? Vem da árvore. De onde vem a árvore?
Da maçã. Podemos, portanto, pensar que temos um círculo vicioso, no qual acabamos por voltar sempre ao mesmo ponto. Árvore, maçã. Maçã, árvore. O mesmo acontecerá se tomarmos o exemplo do ovo e da galinha. De onde vem o ovo? Da galinha. De onde vem a galinha? Do ovo.
Se considerássemos as coisas assim, tal não seria um processo, mas um círculo, e essa aparência deu mesmo a ideia do «retorno ao eterno». Isto é, voltaríamos sempre ao mesmo ponto, ao de partida.
Mas, vejamos exatamente como se põe o problema:
1. Eis uma maçã.
2. Esta, decompondo-se, dá origem a uma ou mais árvores.
3. Cada árvore não dá uma maçã, mas várias.
Não voltamos, portanto, ao mesmo ponto de partida; voltamos à maçã, mas num outro plano.
Do mesmo modo, se partirmos da árvore, teremos:
1. Uma árvore que dá
2. maçãs, e maçãs que darão
3. árvores.
Também aqui voltamos à árvore, mas num outro plano. O ponto de vista ampliou-se.
Não temos, pois, um círculo, como as aparências poderiam fazer pensar, mas um processo de desenvolvimento, a que chamaremos desenvolvimento histórico. A história mostra que o tempo não passa sem deixar marca. Passa, mas os desenvolvimentos que ocorrem não são os mesmos. O mundo, a natureza, a sociedade constituem um desenvolvimento que é histórico, e, em linguagem filosófica, se chama «em espiral».
Servimo-nos desta imagem para fixar as ideias. É uma comparação para ilustrar o fato de que as ciências evoluem segundo um processo circular, mas não voltam ao ponto de partida; voltam um pouco acima, num outro plano, e assim sucessivamente, o que dá uma espiral ascendente.
Por conseguinte, o mundo, a natureza, a sociedade têm um desenvolvimento histórico (em espiral), que é movido, não o esqueçamos, pelo autodinamismo.

IV. — Conclusão.
Acabamos de estudar, nestes primeiros capítulos sobre a dialética, as duas primeiras leis: a da mudança e a da ação recíproca. Isto era indispensável para poder abordar o estudo da lei da contradição, porque é ela que nos vai permitir compreender a força que move «a mudança dialética», o autodinamismo.
No primeiro capítulo, relativo ao estudo da dialética, vimos porque fora esta teoria muito tempo dominada pela concepção metafísica e porque era metafísico o materialismo do século XVIII.
Compreendemos melhor agora, depois de ter visto rapidamente as três grandes descobertas do século XIX, que permitiram ao materialismo desenvolver-se para se tornar dialético, porque era necessário que a história desta filosofia atravessasse os três grandes períodos que conhecemos: 1,° materialismo da antiguidade (teoria
dos átomos); 2.° materialismo do século XVIII (mecanicista e metafísico), para levar, enfim, 3.°, ao materialismo dialético.
Afirmamos que o materialismo nascera das ciências e ligado a elas. Podemos ver, após estes três capítulos, como isso é verdade. Vimos, no estudo do movimento e da mudança dialéticos, depois dessa lei da ação recíproca, que todos os nossos raciocínios são baseados nas ciências.
Hoje, em que os estudos científicos estão especializados ao extremo e os sábios (ignorando, em geral, o materialismo dialético) não podem, por vezes, compreender a importância das suas descobertas particulares em relação ao conjunto das ciências, cabe à filosofia dar uma explicação do mundo e dos problemas mais gerais; é a missão em particular do materialismo dialético - reunir todas as descobertas particulares de cada ciência, para fazer a síntese, e dar, assim, uma teoria que nos torne cada vez mais, como dizia Descartes, «mestres e possuidores da natureza.

49 Friedrich ENGELS: «Ludwig Feuerbach»
50 Idem, p. 34.
51 Friedrich ENGELS: «Ludwig Feuerbach»
52 Foram Schwann e Schleiden que, ao descobrir, com a célula orgânica, «a unidade a partir da qual se desenvolve, por multiplicação e diferenciação, todo o organismo vegetal e animal», estabeleceram a continuidade dos dois grandes reinos da natureza viva.