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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Reflexão de Fidel Castro: Mandela morreu, por que ocultar a verdade sobre o Apartheid?



Talvez o império acreditasse que nosso povo não honraria sua palavra quando, em dias incertos do século passado, afirmamos que mesmo se a URSS desaparecesse Cuba seguiria lutando.

A Segunda Guerra Mundial eclodiu quando em 1º de setembro de 1939, o nazi-fascismo invadiu a Polônia e caiu como um raio sobre o povo heroico da URSS, que deu 27 milhões de vidas para preservar a humanidade daquela brutal matança que pôs fim à vida de mais de 50 milhões de pessoas.

A guerra é, por outro lado, a única atividade ao longo da história que o gênero humano nunca foi capaz de evitar, o que levou Einstein a responder que não sabia como seria a terceira Guerra Mundial, mas a quarta seria com paus e pedras.

Somados os meios disponíveis pelas duas mais poderosas potências, Estados Unidos e Rússia dispõem de mais de 20 mil ogivas nucleares. A humanidade deveria conhecer bem a informação de que, três dias depois da posse de John F. Kennedy na presidência de seu país, em 20 de janeiro de 1961, um bombardeiro B-52 dos Estados Unidos, em voo de rotina, que transportava duas bombas atômicas com uma capacidade destrutiva 260 vezes superior à utilizada em Hiroshima, sofreu um acidente e o avião caiu. Em tais casos, equipamentos automáticos sofisticados aplicam medidas que impedem a explosão das bombas. A primeira caiu na terra sem risco algum; a segunda, dos quatro mecanismos, três falharam, e apenas o quarto, em estado crítico, funcionou; a bomba por puro acaso não explodiu.

Nenhum acontecimento presente ou passado que eu recorde ou tenha ouvido mencionar, impactou tanto a opinião pública mundial como a morte de Mandela; e não por suas riquezas, mas pela qualidade humana e a nobreza de seus sentimentos e ideias.

Ao longo da história, até há apenas um século e meio e antes que as máquinas e robôs, a um custo mínimo de energia, se ocupassem de nossas modestas tarefas, não existia nenhum dos fenômenos que hoje comovem a humanidade e regem inexoravelmente cada uma das pessoas: homens ou mulheres, crianças e idosos, jovens e adultos, agricultores e operários fabris, manuais ou intelectuais. A tendência dominante é a de instalar-se nas cidades, onde a criação de empregos, o transporte e condições elementares de vida demandam enormes investimentos em detrimento da produção alimentar e outras formas de vida mais razoáveis.

Três potências fizeram pousar artefatos na Lua de nosso planeta. No mesmo dia em que Nelson Mandela, envolto na bandeira de sua pátria, foi sepultado no pátio da humilde casa onde nasceu há 95 anos, um módulo sofisticado da República Popular da China descia em um espaço iluminado de nossa Lua. A coincidência de ambos os fatos foi absolutamente casual.

Milhões de cientistas investigam matérias e radiações na Terra e no espaço; por eles se conhece que Titã, uma das luas de Saturno, acumulou 40 vezes mais petróleo do que o existente em nosso planeta quando começou a exploração deste há apenas 125 anos, e ao ritmo atual de consumo durará apenas mais um século.

Os fraternais sentimentos de irmandade profunda entre o povo cubano e a pátria de Nelson Mandela nasceram de um fato que nem sequer foi mencionado, e do qual não tínhamos dito uma palavra ao longo de muitos anos; Mandela, porque era um apóstolo da paz e não desejava prejudicar ninguém. Cuba, porque jamais realizou ação alguma em busca de glória ou prestígio.

Quando a Revolução triunfou em Cuba fomos solidários com as colônias portuguesas na África, desde os primeiros anos; os Movimentos de Libertação nesse continente punham em cheque o colonialismo e o imperialismo, depois da Segunda Guerra Mundial e a libertação da República Popular da China — o país mais povoado do mundo —, e depois do triunfo glorioso da Revolução Socialista Russa.

As revoluções sociais abalavam os cimentos da velha ordem. Os habitantes do planeta, em 1960, já atingiam o número de três bilhões. Paralelamente cresceu o poder das grandes empresas transnacionais, quase todas em mãos dos Estados Unidos, cuja moeda, apoiada no monopólio do ouro e da indústria intacta por estar longe das frentes de batalha, se tornou dona da economia mundial. Richard Nixon derrogou unilateralmente o respaldo de sua moeda em ouro, e as empresas de seu país se apoderaram dos principais recursos e matérias primas do planeta, que adquiriram com papéis.

Até aqui não há nada que são se saiba.

Mas, por que se pretende ocultar que o regime do Apartheid, que tanto fez a África sofrer e indignou a imensa maioria das nações do mundo, era fruto da Europa colonial e foi convertido em potência nuclear pelos Estados Unidos e Israel, regime que Cuba, um país que apoiava as colônias portuguesas na África que lutavam por sua independência, condenou abertamente?

Nosso povo, que tinha sido cedido pela Espanha aos Estados Unidos depois de heroica luta durante mais de 30 anos, nunca se resignou ao regime escravista que lhe impuseram durante quase 500 anos.

Da Namíbia, ocupada pela África do Sul, partiram em 1975 as tropas racistas apoiadas por tanques ligeiros com canhões de 90 milímetros que penetraram mais de mil quilômetros até as proximidades de Luanda, onde um Batalhão de Tropas Especiais cubanas — enviadas por via aérea — e várias tripulações também cubanas de tanques soviéticos que estavam ali sem pessoal, pôde contê-las. Isto ocorreu em novembro de 1975, 13 anos antes da Batalha de Cuito Cuanavale.

Já disse que nada fazíamos em busca de prestígio ou benefício algum. Mas constitui um fato muito real que Mandela foi um homem íntegro, revolucionário profundo e radicalmente socialista, que com grande estoicismo suportou 27 anos de encarceramento solitário. Eu não deixava de admirar sua honradez, sua modéstia e seu enorme mérito.

Cuba cumpria seus deveres internacionalistas rigorosamente. Defendia pontos chaves e treinava a cada ano milhares de combatentes angolanos no manejo das armas. A URSS fornecia o armamento. Contudo, naquela época não compartilhávamos a ideia do assessor principal dos fornecedores do equipamento militar. Milhares de angolanos jovens e saudáveis ingressavam constantemente nas unidades de seu incipiente exército. O assessor principal não era, porém, um Zhúkov, Rokossovski, Malinovsky ou outros muitos que encheram de glória a estratégia militar soviética. Sua ideia obsessiva era enviar brigadas angolanas com as melhores armas ao território onde supostamente residia o governo tribal de Savimbi, um mercenário a serviço dos Estados Unidos e da África do Sul, que equivalia a enviar as forças que combatiam em Stalingrado à fronteira da Espanha falangista que tinha mandado mais de 100 mil soldados para lutar contra a URSS. Naquele ano se estava produzindo uma operação desse tipo.

O inimigo avançava na retaguarda das forças de várias brigadas angolanas, golpeadas nas proximidades do objetivo para onde eram enviadas, a aproximadamente 1.500 quilômetros de Luanda. Dali vinham sendo perseguidas pelas forças sul-africanas em direção a Cuito Cuanavale, antiga base militar da Otan, a cerca de 100 quilômetros da primeira Brigada de Tanques cubana.

Naquele momento crítico o presidente de Angola solicitou o apoio das tropas cubanas. O chefe de nossas forças no sul, general Leopoldo Cintra Frías, nos comunicou a solicitação, algo que era habitual. Nossa firme resposta foi que prestaríamos esse apoio se todas as forças e equipamentos angolanos dessa frente se subordinassem ao comando cubano no sul de Angola. Todo mundo compreendia que nossa solicitação era um requisito para converter a antiga base no campo ideal para golpear as forças racistas da África do Sul.

Em menos de 24 horas chegou de Angola a resposta positiva.

Decidiu-se o envio imediato de uma Brigada de Tanques cubana para esse ponto. Várias outras estavam na mesma linha para o oeste. O obstáculo principal era a lama e a umidade da terra na época de chuva, que era necessário fazer a verificação metro a metro contra minas terrestres. A Cuito, foi enviado igualmente o pessoal para operar os tanques sem tripulação e os canhões que necessitavam delas.

A base era separada do território, que fica a leste pelo caudaloso e rápido rio Cuito, sobre o qual se erguia uma sólida ponte. O Exército racista atacou desesperadamente, conseguiu lançar um avião teleguiado cheio de explosivos e fazê-lo chocar sobre a ponte, inutilizando-a. Os tanques angolanos que podiam mover-se em retirada cruzaram um ponto mais ao norte. Aqueles que não estavam em condições adequadas eram enterrados com suas armas apontando para o leste; uma densa faixa de minas terrestres e antitanques converteu a linha em uma armadilha mortal através do rio. Quando as forças racistas retomaram o avanço e se chocaram contra aquela muralha, todas as peças de artilharia e os tanques das brigadas revolucionárias disparavam desde seus pontos de localização na zona de Cuito.

Um papel especial foi reservado aos caças Mig-23 que, a uma velocidade próxima de mil quilômetros por hora e a 100 metros de altura, eram capazes de distinguir se o pessoal de artilharia era negro ou branco, e disparavam incessantemente contra eles.

Quando o inimigo desgastado e imobilizado iniciou a retirada, as forças revolucionárias se prepararam para os combates finais.

Numerosas brigadas angolanas e cubanas se movimentaram a ritmo rápido e a distância adequada para o oeste, onde estavam as únicas vias amplas por onde sempre os sul-africanos iniciavam suas ações contra Angola. O aeroporto, contudo, situava-se a aproximadamente 300 quilômetros da fronteira com a Namíbia, ocupada totalmente pelo exército do Apartheid.

Enquanto as tropas se reorganizavam e reequipavam, decidiu-se com toda urgência construir uma pista de aterrissagem para os Mig-23. Nossos pilotos estavam utilizando os equipamentos aéreos entregues pela URSS a Angola, cujos pilotos não tinham disposto do tempo necessário para sua adequada instrução. Vários equipamentos aéreos sofreram baixas que às vezes eram ocasionadas por nossos próprios artilheiros ou operadores de meios antiaéreos. Os sul-africanos ainda ocupavam uma parte da principal estrada que conduz desde a borda do planalto angolano à Namíbia. Nas pontes sobre o caudaloso rio Cunene, entre o Sul de Angola e o Norte da Namíbia, começaram nesse lapso de tempo com o joguete de seus disparos com canhões de 140 milímetros que dava a seus projéteis um alcance próximo aos 40 quilômetros. O problema principal radicava no fato de que os racistas sul-africanos possuíam, segundo nossos cálculos, entre 10 e 12 armas nucleares. Eles tinham realizado provas inclusive nos mares ou nas áreas congeladas do sul. O presidente Ronald Reagan tinha autorizado isso, e entre os equipamentos entregues por Israel estava o dispositivo necessário para fazer explodir a carga nuclear. Nossa resposta foi organizar o pessoal em grupos de combate de não mais de mil homens, que deviam marchar de noite em uma ampla extensão de terreno e dotados de carros de combate antiaéreos.

As armas nucleares da África do Sul, segundo informes fidedignos, não podiam ser carregadas por aviões Mirage, necessitavam de bombardeiros pesados tipo Canberra. Mas em qualquer caso a defesa antiaérea de nossas forças dispunha de numerosos tipos de foguetes que podiam golpear e destruir objetivos aéreos a até dezenas de quilômetros de nossas tropas. Adicionalmente, uma represa de 80 milhões de metros cúbicos de água situada em território angolano tinha sido ocupada e minada por combatentes cubanos e angolanos. A explosão daquela represa seria equivalente a várias armas nucleares.

Não obstante, uma hidrelétrica que usava as fortes correntes do rio Cunene, antes de chegar à fronteira com a Namíbia, estava sendo utilizada por um destacamento do exército sul-africano.

Quando no novo teatro de operações os racistas começaram a disparar os canhões de 140 milímetros, os Mig-23 golpearam fortemente aquele destacamento de soldados brancos, e os sobreviventes abandonaram o lugar deixando inclusive alguns cartazes críticos contra seu próprio comando. Tal era a situação quando as forças cubanas e angolanas avançavam rumo às linhas inimigas.

Eu soube que Katiuska Blanco, autora de vários relatos históricos, junto a outros jornalistas e repórteres, estavam ali. A situação era tensa, mas ninguém perdeu a calma.

Foi então que chegaram notícias de que o inimigo estava disposto a negociar. Tinha-se conseguido pôr fim à aventura imperialista e racista; em um continente que em 30 anos terá uma população superior à da China e Índia juntas.

O papel da delegação de Cuba, por motivo do falecimento de nosso irmão e amigo Nelson Mandela, será inolvidável.

Felicito o companheiro Raúl por seu brilhante desempenho e, em especial, pela firmeza e dignidade quando com gesto amável, mas firme, cumprimentou o chefe do governo dos Estados Unidos e lhe disse em inglês: “Senhor presidente, eu sou Castro”.

Quando minha própria saúde pôs limites a minha capacidade física, não vacilei um minuto em expressar meu critério sobre quem a meu juízo poderia assumir a responsabilidade. Uma vida é um minuto na história dos povos, e penso que quem assuma hoje tal responsabilidade requer a experiência e a autoridade necessárias para optar diante de um número crescente, quase infinito, de variantes.

O imperialismo sempre reservará várias cartas para dobrar nossa ilha, embora tenha que despovoá-la, privando-a de homens e mulheres jovens, oferecendo-lhes migalhas dos bens e recursos naturais que saqueia ao mundo.

Que falem agora os porta-vozes do império sobre como e por que surgiu o Apartheid.

Fidel Castro Ruz, em 18 de dezembro de 2013, às 20h35


Tradução de José Reinaldo Carvalho, editor do Vermelho.

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