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terça-feira, 9 de julho de 2013

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado





Friedrich Engels





A GENS ENTRE OS CELTAS E ENTRE OS GERMANOS






A falta de espaço impede-nos de estudar as instituições gentílicas entre diversos povos selvagens e
bárbaros, nos quais, ainda hoje, elas se encontram em forma de maior ou menor pureza; impede-nos de
estudar os vestígios dessas instituições na história primitiva dos povos asiáticos civilizados. Uns e outras são
encontrados em toda parte. Bastarão alguns exemplos. Antes de a gens ser bem conhecida, Mac Lennan, o
homem que mais se esforçou por compreendê-la mal, indicou e descreveu com a maior exatidão sua
existência entre os kalmucos, os cherkeses, os samoyedos e, entre três povos da índia, os waralis, os magares
e os munipuris. Mais recentemente, Maxím Kovalévski a descobriu e descreveu entre os psichavos, os
jevsuros, os svanetos e outras tribos do Cáucaso. Aqui, vamos nos limitar a umas breves notas sobre a gens
entre os celtas e os germanos.
As leis célticas mais antigas que chegaram até nossos dias mostra os a gens ainda em pleno vigor. Na
Irlanda ainda sobrevive, na consciência popular, instintivamente, pois os ingleses a destruíram pela violência.
Na Escócia, em meados do século XVIII, estava em pleno florescimento; e só morreu por obra das leis, dos
tribunais e das armas inglesas.
As leis do antigo País de Gales, escritas vários séculos antes da conquista inglesa, o mais tardar no
século XI, mostram-nos ainda o cultivo da terra em comum por aldeias inteiras, embora apenas por exceção,
como vestígio de um costurre universal anterior. Cada família tinha cinco acres de terra para seu cultivo
particular; afora isso, cultivava-se u m campo em comum e a colheita resultante era repartida. A semelhança
entre Irlanda e Escócia não deixa margem para dúvidas quanto a serem essas comunidades rurais gens ou
frações de gens, ainda que não o prove diretamente w u reestudo das leis gaulesas, para o qual me falta tempo
(minhas anotações foram feitas em 1869). Mas o que os documentos gauleses e irlandeses provam, e de uma
maneira direta, é que no século XI o matrimônio sindiásmico ainda não tinha sido de todo substituído pela
monogamia entre os celtas. No País de Gales, o matrimônio não se consolidava, ou melhor, não se tornava
indissolúvel senão ao cabo de seta anos de convivência. Mesmo que faltassem apenas três noites para
completar estes sete anos os esposos podiam separar-se. Nesse caso repartiam-se os gens: a mulher fazia a
divisão e o homem escolhia em primeiro lugar. Os móveis eram repartidos de acordo com regras
engraçadíssimas: se era o homem quem rompia, tinha que devolver á mulher o dote dela (alguma coisa mais;
se era a mulher, ela recebia menos. Dos filhos, dois ficavam com o homem e um ficava com a mulher ( o
filho do meio). Se a mulher casasse de novo e o primeiro marido se dispusesse a buscá-la de volta, e o
segundo matrimônio ainda não se houvesse consumado, a mulher estava obrigada a voltar ao lar anterior,
ainda que tivesse um pé no novo leito conjugal. Mas, se duas pessoas vivessem juntas durante sete anos,
tornavam-se automaticamente marido e mulher, independentemente de formalidades matrimoniais. Não se
exigia rigorosamente, e nem era observada, a castidade das jovens antes do casamento; as regras
concernentes a este assunto eram de natureza demasiado frívola e contrariam as da moral burguesa. Quando
uma mulher cometia adultério, o marido tinha direito de espancá-la ( este era una dos três casos em que era
lícito fazê-lo; nos demais, incorria em uma pena), mas não podia exigir qualquer outra desforra porque "para
uma mesma ofensa, pode haver castigo ou vingança, mas nunca as duas coisas juntas". Os motivos pelos
quais a mulher podia divorciar-se sem prejuízo dos seus direitos eram muitos e diversos: bastava que o
marido tivesse mau hálito. O resgate pelo direito da primeira noite (gobr merch, e daí o nome medieval
marcheta, em francês marquette) pago ao chefe da tribo, ou rei, representavam um grande papel no Código.
As mulheres tinham direito a votar nas assembléias populares. Na Irlanda, acresce dizer, existiam condições
análogas; eram comuns, igualmente, os matrimônios temporários, e em caso de separação garantiam-se à
mulher privilégios bem definidos, e até mesmo uma remuneração por seus serviços domésticos; ali se
encontrava uma "primeira esposa", ao lado das outras; na divisão das heranças não eram feitas quaisquer
distinções entre filhos legítimos e ilegítimos. Temos, assim, a imagem de um matrimônio sindiásmico,
comparado com o qual o sistema de casamento vigente entre os índios norte-americanos parece severo. Mas
isso não deve surpreender, no século XI, num povo que, no tempo de César, ainda tinha o casamento por
grupos.
As gens irlandesas (sept - a tribo era clainne ou clã) têm sua existência confirmada e são descritas não
só nos antigos livros de leis mas também nos livros dos jurisconsultos ingleses, que visitaram esse país no
século XVII, com o propósito de transformar as terras dos clãs em domínios do rei da Inglaterra. Nesse
tempo, a terra ainda era propriedade coletiva dos clãs ou das gens, exceto onde os chefes já a tinham
convertido em propriedade privada - em propriedade pessoal deles, chefes. Quando morria um membro da
gens e por essa morte se dissolvia uma economia doméstica, o chefe da gens (chamado caput cognationis
pelos jurisconsultos ingleses) promovia uma redistribuição da terra entre os outros lares gentílicos. Em geral,
essa redistribuição devia ser feita consoante regras como as que se observavam na Alemanha.
Todavia, em algumas aldeias - que eram muito numerosas há quarenta ou cinqüenta anos - os campos
são distribuídos por um sistema denominado rundale. Os camponeses exploram o solo individualmente e
pagam pelo arrendamento ao conquistador inglês; antes, a terra era propriedade comum, mas não continuou
assim porque os ingleses a usurparam. Os camponeses juntam todas as terras aráveis e prados, e as- dividem
segundo sua localização e qualidade em "gewanne" (como era dito às margens do Mosela ), e cada um recebe
uma parte em cada "gewanne". Os pântanos e os pastos são de aproveitamento comum. Há não mais de
cinqüenta anos, a redistribuição ainda era ocasionalmente realizada; em alguns lugares, uma vez por ano. O
mapa de uma dessas aldeias rundale tem exatamente o mesmo aspecto do de uma comunidade de habitações
camponesas (Gehoferschaft) das margens do Mosela ou do Hochwald.
A gens sobrevive também nas "factions". Os camponeses irlandeses dividem-se amiúde em grupos,
com base em diferenças de ninharias, absurdas aos olhos dos ingleses. Esses grupos parecem ter por objetivo
apenas o popular esporte de aplicar solenes surras um no outro. São reencarnações artificiais, compensações
póstumas para as gens desmembradas, que, a seu modo, e muito caracteristicamente, demonstram a
continuação do espírito gentílico herdado. Em alguns lugares, os membros de uma mesma gens permanecem
no território que, praticamente, é o que foi dos seus antepassados; assim, por exemplo, na década de 1830, a
grande maioria dos habitantes do condado de Monaghan tinha apenas quatro sobrenomes, isto é, descendia só
de quatro gens, ou clãs.
Na Escócia, a ruína da ordem gentílica data da época em que foi reprimida a insurreição de 1745. Fica
faltando uma investigação para saber qual é o papel representado pelo clã escocês dentro dessa ordem;
porque não há dúvida que é um papel importante. Nas novelas de Walter Scott revive-se este antigo clã da
Alta Escócia diante dos olhos dos leitores. Diz Morgan que é "um exemplar perfeito da gens, em sua
organização e em seu espírito, e uma extraordinária ilustração de como a vida da gens afeta a de seus
membros. Em suas dissensões e em suas vinganças de sangue, na partilha da terra entre os clãs, na
exploração coletiva do solo, na fidelidade dos membros do clã ao chefe e aos companheiros, voltamos a
encontrar os traços característicos da sociedade baseada na gens... A filiação era contada conforme o direito
paterno, de modo que os filhos dos homens permaneciam nos clãs destes e não nos de suas mães." Contudo,
o fato de, na família real dos Picts, de acordo com o testemunho de Beda, ter prevalecido a herança por linha
feminina, constitui bem uma prova de que, primitivamente, o direito materno imperou na Escócia. Também
se conservou, até a Idade Média, entre os escoceses como entre os habitantes do País de Gales, um vestígio
da família punaluana: o direito da primeira noite, que o chefe do clã, ou o rei, podia exercer com toda recém
casada no dia das bodas, na qualidade de último representante dos maridos comuns de outros tempos, caso a
mulher não tivesse sido redimida pelo pagamento de um resgate.
Que os germanos estavam organizados em gens, ao tempo da migração dos povos, é fato indiscutível.
Eles ainda não ocupavam, evidentemente, as terras entre o Danúbio, o Reno, o Vístula e os mares do norte - e
só o fizeram alguns séculos antes da era cristã. Os címbrios, os teutões, estavam ainda em plena migração, e
os suevos não se estabeleceram em lugares fixos senão ao tempo de César. Destes, César diz expressamente
que estavam organizados por gens e por estirpes (gentibus cognationibusque), e essa expressão gentibus, na
boca de um romano da gens júlia, tem um significado claríssimo e bem preciso. Isso era aplicável a todos os
germanos; e, inclusive nas províncias conquistadas pelos romanos, a organização ainda ficou sendo a
gentílica. Consta no Direito Consuetudinário Alamare que o povo se estabeleceu por gens nos territórios
conquistados ao sul do Danúbio (genealogíae). A palavra genealogia é empregada no mesmo sentido das
expressões ulteriores marca e comunidade rural (Dorfgenossenschaft). Recentemente, Kovalévski exprimiu a
opinião de que essas genealogiae seriam grandes comunidades domésticas entre as quais a terra era dividida,
e das quais saíram mais tarde as comunidades rurais. O mesmo pode ser dito a respeito da fara, termo com o
qual os burgundos e os langobardos - duas tribos, uma de origem gótica, outra alto-alemã designavam, talvez
com exatidão, o que o Direito Consuetudinário Alamane chamava a genealogia. Se a comunidade doméstica
aqui referida seria uma gens, é algo para ser ainda pesquisado.
Os documentos filológicos não resolvem nossas dúvidas quanto a ser dada, entre todos os germanos, a
mesma denominação à geras, e qual seria ela. Etimologicamente, ao grego genos e ao latim geras
correspondem o gótico kuni e o meioalto-alemão künne, que são usados com a mesma acepção. O que nos
recorda os tempos do direito materno é o fato de os termos designativos de mulher serem derivados da
mesma raiz: em grego gyne, em eslavo Viena, em gótico guino, em norueguês antigo konu, kuncc. Conforme
dissemos, entre os burgundos e os langobardos, encontramos a palavra Para, que Grimm faz derivar da raiz
hipotética fisan (engendrar). Por mim, dá-la-ia como derivada, de modo mais natural, de faran (marchar,
viajar, regressar), para designar uma fração compacta de uma massa nômade, fração formada por parentes.
Esta designação, no transcurso de vários séculos de migração, primeiro para o leste e depois para o oeste,
pôde acabar por ser aplicada, gradualmente, à própria gens. Mais adiante, temos o gótico sibja, o anglo-saxão
sib, o antigo alto-alemão sippia, sippa, estirpe (sippe). O escandinavo não nos dá mais do que o plural sifjar
(os parentes); o singular existe apenas como nome de uma deusa, Sif. Por fim, achamos ainda outra expressão
no Canto de Hildebrando, onde há esta pergunta a Hadubrando: "Quem é teu pai entre os homens do povo...
ou de que Gens és? ( Eddo huêlihhes cnuosles du sis ) . Se existiu um nome geral germânico para a Gens,
deve ter sido o gótico kuni; não só por sua correspondência com os termos equivalentes nas línguas de
mesma origem, mas, também, pelo fato de derivar-se de kuni a palavra kuning (Kónig), que quer dizer rei,
originalmente significando chefe de geras ou de tribo. Sibja, Sippe ( estirpe) pode, ao que parece, ser deixada
de lado; e sifiar, em escandinavo, não apenas significa parentes consangüíneos como, ainda, parentes por
afinidade, e portanto compreende pelo menos os membros de duas Gens: não é, pois, um sinônimo de geras a
palavra sif.
Tanto entre os germanos, como entre os mexicanos e os gregos, a ordem de batalha, quer se tratasse
de esquadrão de cavalaria, quer de coluna de infantaria em forma de cunha, era integrada por corporações
gentílicas. Quando Tácito diz "por famílias e estirpes", tal expressão vaga é explicável pelo fato de que, em
sua época, havia já muito tempo que a gens deixara de ser em Roma uma associação viva.
Um trecho de decisiva significação é aquele em que Tácito diz que o irmão da mãe considera seu
sobrinho como se fosse filho seu; alguns pensam até ser mais estreito e sagrado o vínculo de sangue entre tio
materno e sobrinho do que entre pai e filho, de sorte que, quando se exigem reféns, o filho da irmã é
considerado uma garantia muito maior do que o próprio filho daquele a quem se quer comprometer. Temos
aqui uma relíquia viva da gens organizada segundo o direito materno, quer dizer, primitiva, e que é descrita
como algo que distingue particularmente os germanos. Quando os membros de uma gens desse tipo davam
seu próprio filho corno garantia de uma promessa solene, e quando este filho era vítima da violação do
tratado por seu pai, o pai não tinha que prestar contas a ninguém; mas, se o sacrificado era o filho de uma
irmã, o sacrifício constituía uma violação do mais sagrado direito da gens - o parente gentílico mais próximo,
a quem incumbia, antes de todos os outros, a proteção do menino ou rapaz, era considerado como culpado de
sua morte. Ou ele não fazia a entrega do refém, ou, feita a entrega, estava obrigado a cumprir o tratado. Se
não encontrássemos qualquer outro traço da gens entre os germanos, esta única passagem seria para nós
prova suficiente.
Ainda mais decisiva por ser de uns oitocentos anos depois, é uma passagem da Völuspá, antigo canto
escandinavo sobre o crepúsculo dos deuses e o fim do mundo. Nessa Visão da Profetisa, na qual existem
elementos cristãos intervenientes (segundo está hoje demonstrado por Bang e Bugge), durante a descrição da
corrupção geral, prelúdio da grande catástrofe, diz o seguinte:
Broedhr munu berjask ok at bõnum verdask; sifjum spilla.
munn systrungar sifjum spilla.
"Os irmãos farão a guerra uns aos outros e assassinar-se-ão; e os filhos das irmãs romperão seus laços
de parentesco". Systrungar quer dizer filho da irmã da mãe; e o repúdio a essa vinculação por parte de filhos
de duas irmãs era considerado pelo poeta como algo mais grave do que o crime de fratricídio. É isto que está
realçado pelo uso da palavra systrungar, em lugar de syskina-born (filhos de irmãos e irmãs), com o que se
revela a intenção de frisar o parentesco por linha materna e não de atenuar a sua importância. Assim, mesmo
no tempo dos vikings, quando a Võluspá foi composta, a recordação do matriarcado subsistia na
Escandinávia.
Já nos tempos de Tácito, entre os germanos (pelo menos entre os que ele conheceu mais de perto), o
direito materno tinha sido substituído pelo paterno; os filhos herdavam do pai, e, na falta deles, herdavam os
irmãos e os tios, de linha materna ou paterna. A admissão do irmão da mãe à herança está ligada à
sobrevivência do costume que acabamos de recordar e prova o quão recente era então o direito paterno entro
os germanos. Encontram-se também traços do direito paterno, mesmo mais tarde, em plena Idade Média.
Segundo parece, naquela época não havia grande confiança no estabelecimento da paternidade,
especialmente entre os servos; por isso, quando um senhor feudal reclamava a uma cidade algum servo seu
fugido (em Augsburgo, Basileia e Kaiserslauten, por exemplo), era preciso que a condição civil do mesmo
fosse confirmada sob juramento por seis de seus mais próximos parentes consangüíneos - e todos eles por
linha materna (Maurer, O Regime das Cidades, pág. 281).
Outro resquício do matriarcado agonizante era o respeito, quase incompreensível para os romanos,
que os germanos devotavam ao sexo feminino. As donzelas jovens das famílias nobres eram tidas como os
reféns mais seguros nos tratos com os germanos. A idéia de que suas mulheres e suas filhas pudessem
permanecer cativas ou ser transformadas em escravas lhes era verdadeiramente terrível, e era aquilo que mais
açulava a sua coragem nas batalhas. Consideravam a mulher como sagrada e com dons proféticos, e
prestavam atenção aos conselhos delas, inclusive nos assuntos mais importantes. Assim, Veleda, a
sacerdotisa bructeriana das margens do Lippe, foi a alma da insurreição batava, em que Civilis, à frente dos
germanos e dos belgas, fez vacilar toda a dominação romana na Gália. A autoridade da mulher parece
indiscutível na casa; é verdade que lhe competiam todos os afazeres domésticos, para os quais ela contava
apenas com a ajuda dos velhos e das crianças, enquanto os homens em idade viril caçavam, bebiam ou não
faziam nada. Isso diz Tácito; mas, como não diz quem lavrava a terra e declara expressamente que os
escravos se limitavam a pagar um tributo, sem prestação pessoal de serviço, omite, provavelmente, que o
pouco trabalho exigido pelo cultivo do solo tinha de ser realizado pelos homens adultos.
Conforme verificamos há pouco, sua forma de matrimônio era a sindiásmica, aproximando-se cada
vez mais da monogamia. Não era ainda a monogamia estrita, pois que aos grandes era permitida a poligamia.
Em geral (e ao contrário do que se passava entre os celtas), zelava-se pela castidade das jovens - e Tácito fala
com verdadeiro entusiasmo da indissolubilidade conjugal imperante entre os germanos. Indica o adultério por
parte da mulher como razão única que autorizava o divórcio. Mas seu livro tem muitas lacunas, aqui, e revela
em demasiado evidente preocupação de servir de espelho de virtude para os corruptos romanos. O que há de
certo é que, se os germanos em seus bosques foram tão notáveis padrões de virtude, bastou-lhes um
ligeiríssimo contato com o exterior para se porem ao nível do resto da Europa; sob Roma, perderam a rigidez
dos costumes muito mais rapidamente que a língua germana. Basta ler Gregório de Tours. Está claro que nas
selvas virgens da Germânia não podiam imperar, como em Roma, os excessos refinados nos prazeres
sensuais, e, portanto, nesse particular, eles guardavam uma certa superioridade de costumes relativamente aos
romanos; mas nem por isso devemos atribuir-lhes quanto ás coisas da carne uma continência que jamais
prevaleceu como regra em povo algum.
A constituição da gens deu origem á obrigação de herdar tanto as amizades como as inimizades do pai
ou dos parentes, e também á compensação ("Wergeld") em lugar da vingança de sangue por homicídio ou
lesão corporal. Há não mais de uma geração, esta compensação ("Wergeld") era considerada uma instituição
exclusiva da Germânia; hoje ela é encontrada em centenas de povos, como uma forma atenuada da vingança
elo sangue, característica da gens. Entre os índios da América, a compensação coexiste com a obrigação da
hospitalidade. Aliás, a descrição da maneira como os germanos exerciam a hospitalidade (Tácito, Germania,
cap. 21) coincide até em suas minúcias com a descrição de Morgan relativa aos índios.
Hoje pertencem ao passado as acaloradas e intermináveis discussões quanto aos germanos de Tácito:
se eles tinham repartido definitivamente as terras de trabalho e como deveriam ser interpretadas as passagens
referentes a este assunto. Desde que se demonstrou que em quase todos os povos existiu o cultivo da terra em
comum pela Gens, e mais adiante pela comunidade familiar comunista ( o que César já observara entre os
suevos ), assim como a posterior divisão da terra pelas famílias individuais, com novas divisões periódicas;
desde que se provou que essa redistribuição periódica da terra foi mantida, em certas comarcas da Alemanha,
até os nossos dias, é inútil desperdiçarmos tempo e palavras com o tema. Se, do cultivo da terra em comum,
tal como é descrito por César entre os suevos ( não há entre eles, diz, nenhuma espécie de campos divididos
ou particulares), passaram os germanos, nos cento e cinqüenta anos que se seguiram àquela época, ao cultivo
individual com partilha anual do solo, isto é um grande progresso, sem dúvida; mas cremos ser impossível a
passagem à plena propriedade privada do solo, sem qualquer intervenção estranha, num tão breve período.
Limito-me a ler em Tácito, pois, apenas estas palavras: "Trocam ( ou redividem ) a cada ano as terras
cultivadas, e além disso lhes ficam muitas terras comuns." Esta é a etapa da agricultura e da apropriação do
solo, que corresponde exatamente à Gens do tempo dos germanos.
Deixo o parágrafo anterior tal como se encontra nas três edições precedentes deste livro, sem
modificá-lo em nada. Desde que foi escrito, no entanto, o assunto assumiu outro aspecto. A partir da
demonstração, por Kovalévski ( ver página 54), da existência muito difundida - senão geral da comunidade
doméstica patriarcal como fase intermediária entre a família comunista matriarcal e a família individual
moderna, já não se pergunta, como desde Maurer até Waitz, se a propriedade do solo era coletiva ou
particular; o que hoje se indaga é qual era a forma da propriedade coletiva. Não há dúvida de que entre os
suevos existiam, no tempo de César, não só a propriedade coletiva da terra como também o cultivo desta em
comum. Ainda se há de discutir por algum tempo se a unidade econômica era a gens, a comunidade
doméstica, ou um grupo consangüíneo comunista intermediário entre as duas; ou se os três grupos coexistiam
segundo as condições do solo. Kovalévski, porém, afirma que a situação descrita por Tácito não implica em
comunidade rural ou marca, e sim em comunidade doméstica - da qual haveria de sair mais adiante, como
conseqüência do aumento de população a comunidade rural.
De acordo com este ponto de vista, os germanos, nos territórios que ocupavam ao tempo dos romanos,
e no que depois tomaram aos romanos, não estavam estabelecidos em povoados, e sim em grandes
comunidades familiares que compreendiam muitas gerações, e onde cultivavam uma extensão de terra
correspondente ao número dos seus membros, deixando incultas as terras que serviam de limites com as
propriedades vizinhas. O trecho de Tácito referente às trocas de solo cultivado, portanto, deveria ser
entendido no sentido agronômico, já que a comunidade lavrava a cada ano certa extensão de terra e deixava
em alqueive ou até completamente baldias as terras cultivadas no ano anterior. Dada a pouca densidade da
população, havia sempre terra sobrando, de modo que as disputas quanto a elas se tornavam desnecessárias.
Só depois de séculos, a comunidade se veio a dissolver, quando o número dos seus membros cresceu tanto
que já não era possível o trabalho comum nas condições de produção da época; os campos e os prados, até
então comuns, foram divididos, pela forma já conhecida ( a princípio temporária e depois definitivamente),
entre as famílias individuais que se iam formando, ao passo que continuavam sendo de aproveitamento
comum as florestas, os pastos e as águas.
Quanto á Rússia, este processo evolutivo parece de todo comprovado historicamente. No que
concerne á Alemanha, e em segundo lugar aos demais países germânicos, não se pode negar que esta é a
hipótese que mais luz lança sobre os documentos e permite a mais razoável interpretação das fontes; é
superior, certamente, à hipótese que faz remontar ao tempo de Tácito a comunidade rural. Os documentos
mais antigos, por exemplo, o Codex Laureschamensis, são melhor explicáveis pela comunidade de famílias
do que pela comunidade rural ou marca. Por outro lado, nossa hipótese promove outras dificuldades e propõe
novos problemas para os quais será preciso achar uma solução. Aqui, só investigações posteriores serão
decisivas. No entanto, não me posso furtar a dizer que, como grau intermediário, a comunidade familiar tem
muitas probabilidades em seu favor na Alemanha, na Escandinávia e na Inglaterra.
Enquanto na época de César os germanos mal tinham chegado ( e não de todo) a estabelecer-se em
residências fixas, ao tempo de Tácito já se achavam estabelecidos há um século inteiro; em correspondência a
isso é inegável o progresso na produção dos meios de existência. Viviam em casas de troncos, suas
vestimentas eram ainda bastante primitivas, próprias de habitantes da floresta: um grosseiro manto de lã,
peles de animais, e túnicas de linho para as mulheres e as pessoas de destaque. Sua alimentação se compunha
de leite, carne, frutas silvestres e, como acrescenta Plínio, papas de farinha de aveia ( ainda hoje este é o prato
nacional céltico na Irlanda e na Escócia). Sua grande riqueza era o gado, mas de qualidade inferior: os bois
eram pequenos, de má aparência e sem chifres, e os cavalos eram poneizinhos, maus corredores. A moeda -
só existia a moeda romana - era escassa e de pouco uso. Não trabalhavam o ouro ou a prata, nem lhes davam
valor. O ferro era raro e, pelo menos nas tribos do Reno e do Danúbio, quase todo importado, pois não o
extraíam eles mesmos. Os caracteres rúnicos (imitados de letras gregas ou latinas) constituíam um código
secreto, usado apenas para feitiçarias religiosas. Ainda se usavam sacrifícios humanos. Em resumo: era um
povo recém-passado da fase média á fase superior da barbárie. É inegável, contudo, que ao contrário do que
se passou com as tribos cujos territórios confinavam com os dos romanos, que tinham as maiores facilidades
para importar produtos da indústria romana, as tribos do nordeste, das margens do Mar Báltico, acabaram
desenvolvendo uma indústria própria, metalúrgica e têxtil. As armas de ferro encontradas nos pântanos da
Silésia (uma pesada espada de ferro, uma cota de malha, um elmo de prata, etc., com moedas romanas de fins
do século II) e os objetos metálicos de fabricação germana difundidos pela emigração, são de um tipo de
artesanato muito característico e de uma perfeição incomum, inclusive quando imitam, em seus começos,
originais romanos. A emigração para o império romano civilizado pôs fim em toda parte a esta indústria
indígena, exceto na Inglaterra. Os broches de bronze, por exemplo, mostramnos com que uniformidade
nasceram e se desenvolveram tais indústrias; os exemplares achados na Burgúndia, na Romênia e nas
margens do Mar de Azov poderiam ter saído da mesma oficina que os broches ingleses e suecos, e são sem
dúvida de origem germânica.
A constituição dos germanos corresponde, igualmente, à fase superior da barbárie. Segundo Tácito,
havia, em regra, o conselho dos chefes (príncipes), que decidia nos assuntos menos importantes e preparava
os mais importantes para apresentá-los à votação pela assembléia do povo. Esta última, na fase inferior da
barbárie - pelo menos entre os americanos, onde a pudemos encontrar - existe somente para a Gens, e não
para a tribo ou para a confederação de tribos. Os chefes (príncipes) distinguem-se ainda bastante dos
caudilhos militares (duces), tal como entre os iroqueses. Os primeiros vivem já, em parte, de presentes
honoríficos, o gado e os cereais com que os homenageiam os gentílicos; e quase sempre, como na América,
são eleitos de uma mesma família. A passagem ao direito paterno favorece a transformação progressiva da
eleição em direito hereditário, como na Grécia e em Roma, e, por conseguinte, a formação de uma família
nobre em cada Gens. A maior parte desta velha nobreza dita tribal desapareceu com a imigração dos povos,
ou pouco depois dela. Os chefes militares, por seu trono, eram escolhidos de acordo com a capacidade,
independentemente da origem alue tivessem. Atribuíam-se-lhes parcos poderes, e deveriam influir sobretudo
pelo exemplo; Tácito atribui expressamente n poder disciplinador no exército aos sacerdotes. O verdadeiro
poder, de fato, era o da assembléia do povo, presidida pelo rei ou chefe da tribo. O povo decidia:
murmurando manifestava desaprovação e aclamando e fazendo barulho com as armas demonstrava
aprovação. A assembléia popular era também corte de justiça; perante ela eram apresentadas as demandas
para serem resolvidas, e ela é que ditava a aplicação da pena de morte, cabível unicamente nos casos de
covardia, traição contra o povo e vícios antinahirais. Nas gens e em outras subdivisões, igualmente, é a
coletividade presidida por ,seu chefe que ministra justiça; o chefe, como nos primitivos tribunais germânicos,
nunca pôde ser mais do que dirigente do processo e interrogador. Entre os germanos, a sentença sempre foi
pronunciada por toda a coletividade.
Ao tempo de César, formaram-se as confederações de tribos. Em algumas já havia reis. Tal como
entre os gregos e os romanos, o supremo comandante militar começou a aspirar à tirania, por vezes lograndoa.
E embora estes usurpadores bem sucedidos jamais chegassem a exercer um poder absoluto, promoviam um
processo de rompimento das ligações gentílicas. Enquanto que, em outros tempos, os escravos alforriados
eram de condição social inferior (pois não podiam pertencer a gens alguma), junto aos novos reis apareceram
escravos favoritos, que chegavam a ter freqüentemente altos postos, riquezas e honrarias. O mesmo
aconteceu depois da conquista do império romano, quando os chefes militares passaram a exercer . um poder
soberano sobre vastas extensões territoriais; entre os francos, os escravos e os libertos dos reis representaram
um grande papel, primeiro na corte e depois no Estado - seus descendentes constituíram boa parte da nova
aristocracia.
Uma instituição, em especial, favoreceu a implantação da monarquia: a dos corpos de tropa
organizados por particulares. Já vimos como entre os peles-vermelhas americanos, paralelamente ao regime
da gens, foram criadas companhias particulares para guerrear por sua própria conta e risco. Estas companhias
adquiriram entre os germanos um caráter permanente. Um chefe guerreiro famoso reunia em torno dele um
grupo de moços ávidos de botins; os moços obrigavam-se a ser-lhes leais, e o chefe a eles. Era o chefe quem
providenciava o sustento da tropa, distribuía presentes e organizava uma hierarquia; formava uma escolta e
uma tropa aguerrida para as expedições menores e instruía oficiais para as maiores. Por débeis que devam ter
sido tais companhias - e na realidade assim eram, por exemplo, as expedições de Odoacro na Itália - foram,
entretanto, o germe da derrocada da antiga liberdade popular, o que pôde ser comprovado durante a
emigração dos povos e depois dela. Primeiro: porque favoreceram o aparecimento do poder real; segundo,
porque - como advertiu Tácito - não se poderiam manter coesas senão por meio de contínuas guerras e
expedições de rapina, que a, acabaram por servir-lhes de finalidade exclusiva. Quando o chefe ( da
companhia não tinha nada que fazer na vizinhança, ia procurar, com suas tropas, entre outros povos, onde
houvesse guerra e possibilidades de saque. As forças germanas auxiliares que, sob o emblema dos romanos,
combateram os próprios germanos, estavam em parte compostas de companhias dessa espécie. Constituíam o
embrião do Landsknecht, vergonha e flagelo dos alemães. Depois da conquista do império romano, essas
companhias particulares dos reis, com os servos e criados da corte romana, formaram o segundo elemento
principal da futura nobreza.
Em geral, pois, as tribos alemãs reunidas em povos têm a mesma constituição dos gregos da época
heróica e dos romanos do tempo dito dos reis: assembléias do povo, conselho dos chefes de gens e
comandantes militares; estes ambicionando, já, chegar a um poder efetivamente real. Tal foi a constituição
mais perfeita que a gens pôde produzir; era a organização típica da fase superior da barbárie. Na ocasião em
que a sociedade ultrapassou os limites para os quais essa constituição era eficaz e suficiente, o regime
gentílico se acabou. E, destruindo-se este, o Estado ocupou seu lugar.



Próximo capitulo - A FORMAÇÃO DO ESTADO ENTRE OS GERMANOS

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