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quinta-feira, 20 de junho de 2013

A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO (II)


 Friedrich Engels


A FAMÍLIA PUNALUANA




A FAMÍLIA PUNALUANA. Se o primeiro progresso na organização da família consistiu em excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas, o segundo foi a exclusão dos irmãos. Esse progresso foi infinitamente mais importante que o primeiro e, também, mais difícil, dada a maior igualdade nas idades
dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, provavelmente começando pela exclusão dos irmãos
uterinos ( isto é, irmãos por parte de mãe), a princípio em casos isolados e depois, gradativamente, como
regra geral ( no Havaí ainda havia exceções no presente século) e acabando pela proibição do matrimônio até
entre irmãos colaterais ( quer dizer, segundo nossos atuais nomes de parentesco, entre primos carnais, primos
em segundo e terceiro graus). Segundo Morgan, esse progresso constitui "uma magnífica ilustração de como
atua o princípio da seleção natural". Sem dúvida, nas tribos onde esse progresso limitou a reprodução
consangüínea, deve ter havido um progresso mais rápido e mais completo que naquelas onde o matrimônio
entre irmãos e irmãs continuou sendo uma regra e uma obrigação. Até que ponto se fez sentir a ação desse
progresso o demonstra a instituição da geras, nascida diretamente dele e que ultrapassou de muito seus fins
iniciais. A gens formou a base da ordem social da maioria, senão da totalidade, dos povos bárbaros do
mundo, e dela passamos, na Grécia e em Roma, sem transições, á civilização.
Cada família primitiva teve que cindir-se, o mais tardar depois de algumas gerações. A economia
doméstica do comunismo primitivo, que domina com exclusividade até bem avançada a fase média da
barbárie, prescrevia uma extensão máxima da comunidade familiar, variável segundo as circunstâncias,
porém mais ou menos determinada em cada localidade. Mas, apenas surgida, a idéia da impropriedade da
união sexual entre filhos da mesma mãe deve ter exercido sua influência na cisão das velhas comunidades
domésticas (Hausgemeinden) e na formação de outras novas comunidades, que não coincidiam
necessariamente com o grupo de famílias. Um ou mais grupos de irmãs convertiam-se no núcleo de uma
comunidade, e seus irmãos carnais, no núcleo de outra. Da família consangüínea saiu, dessa ou de outra
maneira análoga, a forma de família à qual Morgan dá o nome de família punaluana. De acordo com o
costume havaiano, certo número de irmãs carnais ou mais afastadas (isto é, primas em primeiro, segundo e
outros graus) eram mulheres comuns de seus maridos comuns, dos quais ficavam excluídos, entretanto, seus
próprios irmãos. Esses maridos, por sua parte, não se chamavam entre si irmãos, pois já não tinham
necessidade de sê-lo, mas "punalua", quer dizer, companheiro íntimo, como quem diz "associé". De igual
modo, uma série de irmãos uterinos ou mais afastados tinham em casamento comum certo número de
mulheres, com exclusão de suas próprias irmãs, e essas mulheres chamavam-se entre si "punalua". Este é o
tipo clássico de uma formação de família (Familien-formation) que sofreu, mais tarde, uma série de
variações, e cujo traço característico essencial era a comunidade recíproca de maridos e mulheres no seio de
um determinado círculo familiar, do qual foram excluídos, todavia, no princípio, os irmãos carnais e, mais
tarde, também os irmãos mais afastados das mulheres, ocorrendo o mesmo com as irmãs dos maridos.
Esta forma de família agora nos indica, com a mais perfeita exatidão, os graus de parentesco, da
maneira como os expressa o sistema americano. Os filhos das irmãs de minha mãe são também filhos desta,
assim como os filhos dos irmãos de meu pai o são também deste; e todos eles são irmãs e irmãos meus. Mas
os filhos dos irmãos de minha mãe são sobrinhos e sobrinhas desta, assim como os filhos das irmãs de meu
pai são sobrinhos e sobrinhas deste; e todos são meus primos e primas. Com efeito, enquanto os maridos das
irmãs de minha mãe são também maridos desta e, igualmente, as mulheres dos irmãos de meu pai são
também mulheres deste - de direito, se nem sempre de fato -, a proibição das relações sexuais entre irmãos e
irmãs pela sociedade levou á divisão dos filhos de irmãos e irmãs, até então indistintamente considerados
irmãos e irmãs, em duas classes: uns continuam sendo, como antes, irmãos e irmãs (colaterais); outros - de
um lado os filhos dos irmãos, de outro os filhos das irmãs - não podem continuar mais como irmãos e irmãs,
já não podem ter progenitores comuns, nem o pai, nem a mãe, nem os dois juntos; e por isso se torna
necessária, pela primeira vez, a categoria dos sobrinhos e sobrinhas, dos primos e primas, categoria que não
teria sentido algum no sistema familiar anterior. O sistema de parentesco americano, que parece inteiramente
absurdo em qualquer forma de família que, de um ou de outro modo, se baseia na monogamia, explica-se de
maneira racional e justifica-se, naturalmente, até em seus menores detalhes, pela família punaluana. A família
punaluana, ou qualquer forma análoga, deve ter existido pelo menos na mesma medida em que prevaleceu
este sistema de parentesco.
Essa forma de família, cuja existência no Havaí está demonstrada, teria sido também demonstrada
provavelmente em toda a Polinésia se os piedosos missionários, tal como no passado os frades espanhóis na
América, tivessem podido ver nessas relações anticristãs algo mais que uma simples "abominação." Quando
César nos diz dos bretões - os quais, naquele tempo, estavam na fase média da barbárie - que "cada dez ou
doze homens têm mulheres comuns, com a particularidade de, na maioria dos casos, serem irmãos e irmãs, e
pais e filhos", a melhor explicação que se pode dar para isso é o matrimônio por grupos. As mães bárbaras
não têm dez ou doze filhos em idade de manter mulheres comuns; mas o sistema americano de parentesco,
que corresponde á família punaluana, dá ensejo a um grande número de irmãos, posto que todos os primos
carnais ou remotos de um homem são seus irmãos. É possível que a expressão "pais com seus filhos" seja um
equívoco de César; esse sistema, entretanto, não exclui absolutamente que se encontrem em um mesmo
grupo conjugal pai e filho, mãe e filha, mas apenas que nele se encontrem pai e filha, mãe e filho. Essa forma
de família nos fornece, também, a explicação mais simples para as narrações de Heródoto e de outros
escritores antigos sobre a comunidade de mulheres entre os povos selvagens e bárbaros. O mesmo se pode
dizer do que Watson e Kaye contam acerca dos tikurs do Audh, ao norte do Ganges, em seu livro A
População da índia (1868/1872): "Coabitam (quer dizer, fazem vida sexual) quase sem distinção, em grandes
comunidades; e quando dois indivíduos se consideram marido e mulher, o vínculo que os une é puramente
nominal."
Na imensa maioria dos casos, a instituição da gens parece ter saído diretamente da família punaluana.
É certo que o sistema de classes australiano também representa um ponto de partida para a gens; os
australianos têm a gens, mas ainda não têm a família punaluana, e sim uma forma mais primitiva de grupo
conjugal.
Em todas as formas de família por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma
criança, mas sabe-se quem é a mãe. Ainda que ele chame filhos seus a todos os da família comum, e tenha
deveres maternais para com eles, nem por isso deixa de distinguir seus próprios filhos entre os demais. É
claro, portanto, que em toda parte onde existe o matrimônio por grupos a descendência só pode ser
estabelecida do lado materno, e, por conseguinte, apenas se reconhece a linhagem feminina. Encontram-se
nesse caso, de fato, todos os povos selvagens e todos os povos que se acham na fase inferior da barbárie; ter
sido o primeiro a fazer essa descoberta foi a segunda grande façanha de Bachofen. Ele designa o
reconhecimento exclusivo da filiação materna e as relações de herança dele deduzidas com o nome de direito
materno. Conservo essa expressão por motivo de brevidade, mas ela é inexata, porque naquela fase da
sociedade ainda não existia direito, no sentido jurídico da palavra.
Tomemos agora, na família punaluana, um dos dois grupos típicos - concretamente, o de uma série de
irmãs carnais e colaterais (isto é, descendentes de irmãs carnais em primeiro, segundo e outros graus), com
seus filhos e seus irmãos carnais ou colaterais por linha materna (os quais, de acordo com nossa premissa,
não são seus maridos), e teremos exatamente o círculo dos indivíduos que, mais adiante, aparecerão membros
de uma gens, na forma primitiva desta instituição. Todos têm por tronco comum uma mãe e, em virtude dessa
origem, os descem dentes femininos formam gerações de irmãs. Porém, os maridos de tais irmãs já não
podem ser seus irmãos; logo, não podem descender daquele tronco materno e não pertencem a este grupo
consangüíneo, que mais tarde chega a constituir a gens, embora seus filhos pertençam a tal grupo, pois a
descendência por linha materna é a única decisiva, por ser a única certa. Uma vez proibidas as relações
sexuais entre todos os irmãos e irmãs - inclusive os colaterais mais distantes – por linha materna, o grupo de
que falamos se transforma numa gens, isto é, constitui-se num círculo fechado de parentes consangüíneos por
linha feminina, que não se podem casar uns com os outros; e, a partir de então, este círculo se consolida cada
vez mais por meio de instituições comuns, de ordem social e religiosa, que o distingue das outras gens da
mesma tribo. Adiante voltaremos, com maiores detalhes, a essa questão. Se considerarmos, contudo, que a
gens surge da família punaluana, não só necessária mas naturalmente, teremos fundamento para considerar
quase indubitável a existência anterior dessa forma de família em todos os povos em que podem ser
comprovadas instituições gentílicas, isto é, em quase todos os povos bárbaros e civilizados.
Quando Morgan escreveu seu livro, nossos conhecimentos sobre o matrimônio por grupos eram muito
limitados. Sabia-se de alguma coisa do matrimônio por grupos entre os australianos organizados em classes
e, além disso, Morgan já havia publicado em 1871 todos os dados que possuía a respeito da família
punaluana no Havaí. A família punaluana propiciava, por um lado, a explicação completa do sistema de
parentesco vigente entre os índios americanos e que tinha sido o ponto de partida de todas as investigações de
Morgan; por outro lado, era a base para a dedução da gens do direito materno; e, finalmente, era um grau de
desenvolvimento muito mais alto que o das classes australianas. Compreende-se, pois, que Morgan a
concebesse como estágio de desenvolvimento imediatamente anterior ao matrimônio sindiásmico e lhe
atribuísse uma difusão geral nos tempos primitivos. Desde então, chegamos a conhecer outra série de formas
de matrimônio por grupos, e agora sabemos que Morgan foi longe demais nesse ponto. No entanto, em sua
família punaluana, ele teve a felicidade de encontrar a mais elevada, a clássica forma do matrimônio por
grupos, a forma que explica de maneira mais simples a passagem a uma forma superior.
Se houve um considerável enriquecimento nas noções que temos do matrimônio por grupos, devemolo,
sobretudo, ao missionário inglês Lorimer Fison, que, durante anos, estudou essa forma de família em sua
terra clássica, a Austrália. Entre os negros australianos do monte Cambier, no sul da Austrália, foi onde
encontrou o mais baixo grau de desenvolvimento. A tribo inteira divide-se, ali, em duas grandes classes: os
krokis e os kumites. São terminantemente proibidas as relações sexuais no seio de cada uma dessas classes;
em compensação, todo homem de uma dessas classes é marido nato de toda mulher da outra, e
reciprocamente. Não são os indivíduos, mas os grupos inteiros, que estão casados uns com os outros, classe
com classe. E note-se que ali não há, em parte alguma, restrições por diferenças de idade ou de
consangüinidade especial, salvo a determinada pela divisão em duas classes exógamas. Um kroki tem, de
direito, por esposa, toda mulher komite; e, como sua própria filha, como filha de uma komite, é também
komite, em virtude do direito materno, é, por causa disso, esposa nata de todo kroki, inclusive de seu pai. Em
qualquer caso, a organização por classes, tal como se nos apresenta, não opõe a isto nenhum obstáculo.
Assim, pois, ou essa organização apareceu em uma época em que, apesar da tendência instintiva de se limitar
o incesto, não se via ainda qualquer mal nas relações sexuais entre filhos e pais - e, então, o sistema de
classes deve ter nascido diretamente das condições do intercurso sexual sem restrições - ou, ao contrário,
quando se criaram as classes, estavam já proibidas, pelo costume, as relações sexuais entre pais e filhos, e,
então, a situação atual assinala a existência anterior da família consangüínea e constitui o primeiro passo
dado para dela sair. Esta última hipótese é a mais verossímil. Que eu saiba, não se encontram exemplos de
união conjugal entre pais e filhos na Austrália; e, além disso, a forma posterior da exogamia, a gens baseada
no direito materno, pressupõe tácitamente a proibição desse comércio como coisa que havia sido já
estabelecida antes do seu aparecimento.
O sistema das duas classes encontra-se não só na região do monte Gambier, ao sul da Austrália, mas,
ainda, nas margens do rio Darling, mais a leste, e em Queensland, no nordeste, de modo que está bastante
difundido. Este sistema apenas exclui os matrimônios entre irmãos e imãs, entre filhos de irmãos e entre
filhos de irmãs por linha materna, porque estes pertencem à mesma classe; os filhos de irmão e irmã, ao
contrário, podem casar-se uns com os outros. Um novo passo no sentido da proibição do casamento entre
consangüíneos observamos entre os kamilarois, às margens do Darling, na Nova Gales do Sul, onde duas
classes originárias se cindiram em quatro, e onde cada uma dessas quatro classes casa-se, inteira, com outra
determinada. As duas primeiras classes são esposos natos, uma da outra; mas, segundo a mãe pertença à
primeira ou à segunda, passam os filhos à terceira ou à quarta. Os filhos destas duas últimas classes,
igualmente casadas uma com a outra, pertencem, de novo, à primeira e à segunda. De sorte que sempre uma
geração pertence à primeira e à segunda classe, a geração seguinte, à terceira e à quarta, e a que vem
imediatamente depois, de novo à primeira e à segunda classe. Do que se deduz que filhos de irmão e irmã
(por linha materna) não podem ser marido e mulher, porém podem sê-lo os netos de irmão e irmã. Este tão
complicado sistema enreda-se ainda mais, pois enxerta-se nele, mais tarde, a gens baseada no direito
materno; nesse ponto, contudo, não podemos, aqui, entrar em minúcias. Observamos, pois, que a tendência
para impedir o matrimônio entre consangüíneos manifesta-se aqui e ali, mas de maneira espontânea, em
tentativas, sem ume, consciência clara dos fins objetivados.
O matrimônio por grupos, que, na Austrália, é também um matrimônio por classes, a união conjugal
em massa de toda uma classe de homens, freqüentemente dispersa pelo continente inteiro, com toda uma
classe de mulheres não menos dispersa, esse matrimônio por grupos, visto de perto, não é monstruoso como o
figura a fantasia dos filisteus, acostumados à sociedade da prostituição. Ao contrário, transcorreram muitos
anos antes de que se viesse a suspeitar de sua existência, a qual, na verdade, foi posta de novo em dúvida só
muito recentemente. Aos olhos do observador superficial, parece uma monogamia de vínculos bastante
frouxos e, em alguns lugares, uma poligamia acompanhada de infidelidade ocasional. É necessário consagrarlhe
anos de estudo, como fizeram Fison e Howitt, para descobrir nessas relações conjugais ( que na prática,
recordam muito bem à generalidade dos europeu os costumes de suas pátrias) a lei em virtude da qual o
negro australiano, a milhares de quilômetros de seu lar, nem por isso deixa de encontrar, entre gente cuja
linguagem não compreende - e amiúde em cada acampamento, em cada tribo - mulheres que se lhe entregam
voluntariamente, sem resistência; lei por força da qual quem tem várias mulheres cede uma a seu hóspede
para ele passar a noite. Ali, onde o europeu vê imoralidade e ausência de qualquer lei, reina, de fato, uma lei
rigorosa. As mulheres pertencem à classe conjugal do forasteiro e são, por conseguinte, suas esposas natas; a
mesma lei moral que destina um a outro, proíbe, sob pena de infâmia, todo intercurso sexual fora das classes
conjugais que se pertencem reciprocamente. Mesmo nos lugares onde se pratica o rapto das mulheres, que
ocorre amiúde e em várias regiões é regra geral, a lei das classes é mantida escrupulosamente.
No rapto das mulheres, encontram-se, já, indícios da passagem à monogamia, pelo menos na forma de
casamento sindiásmico; quando um jovem, com ajuda de seus amigos, rapta á força ou pela sedução, uma
jovem, ela é possuída por todos um em seguida ao outro, mas depois passa a ser esposa do promotor do rapto.
E, inversamente, se a mulher roubada foge da casa de seu marido e é recolhida por outro, torna-se esposa
deste último, perdendo o primeiro suas prerrogativas. Ao lado e no seio do matrimônio por grupos, que, em
geral, continua existindo, encontram-se, pois, relações exclusivistas, uniões por casais, a prazo mais ou
menos longo, e também a poligamia; de maneira que também aqui o matrimônio por grupos vai se
extinguindo, ficando o problema reduzido a saber-se quem, sob a influência européia, desaparecerá primeiro
da cena: o matrimônio por grupos ou os negros australianos que ainda o praticam.
O matrimônio por classes inteiras, tal como existe na Austrália, é, em todo caso, uma forma muito
atrasada e muito primitiva do matrimônio por grupos, ao passo que a família punaluana constitui, pelo que
nos é dado conhecer, o seu grau superior de desenvolvimento. O primeiro parece ser a forma correspondente
ao estado social dos selvagens errantes; a segunda já pressupõe o estabelecimento fixo de comunidades
comunistas e conduz diretamente ao grau imediatamente superior de desenvolvimento. Entre essas duas
formas de matrimônio, encontraremos ainda, sem dúvida, graus intermediários; este é um terreno para

pesquisas que apenas foi descoberto, e no qual somente se deram os primeiros passos.

Próximo capitulo:  A FAMÍLIA SINDIÁSMICA

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