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quarta-feira, 19 de junho de 2013

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado

Friedrich Engels



Aos amigos e camaradas, nem todos tiveram oportunidade de ler A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE E DO ESTADO, uma obra importante de Friedrich Engels. Uma obra que possibilita conhecer o processo da evolução da humanidade, o processo histórico e econômico desde o período primitivo, até a fase da formação do estado e, conseqüentemente, o processo de formação da família até o estagio monogâmico, que prevalece até  hoje.  Dividi, a meu critério, a obra em capítulos para facilitar e não tornar cansativa sua leitura.






I - ESTÁGIOS PRÉ-HISTÓRICOS DE CULTURA


Morgan foi o primeiro que, com conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na
pré-história da humanidade, e sua classificação permanecerá certamente em vigor até que uma riqueza de
dados muito mais considerável nos obrigue a modificá-la., Das três épocas principais - estado selvagem,
barbárie e civilização - ele só se ocupa, naturalmente, das duas primeiras e da passagem à terceira. Subdivide
cada uma das duas nas fases inferior, média e superior, de acordo com os progressos obtidos na produção dos
meios de existência; porque, diz, "a habilidade nessa produção desempenha um papel decisivo no grau de
superioridade e domínio do homem sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que logrou um
domínio quase absoluto da produção de alimentos. Todas as grandes épocas de progresso da humanidade
coincidem, de modo mais ou menos direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existência". O
desenvolvimento da família. realiza-se paralelamente, mas não oferece critérios tão conclusivos para a
delimitação dos períodos.

1- Estado selvagem

1-FASE INFERIOR. Infância do gênero humano. Os homens permaneciam, ainda, nos . bosques tropicais ou
subtropicais e viviam, pelo menos parcialmente, nas árvores; só isso explica que continuassem a existir, em
meio às grandes feras selvagens. Os frutos, as nozes e as raízes serviam de alimento; o principal progresso
desse período é a formação da linguagem articulada. Nenhum dos povos conhecidos no período histórico
estava nessa fase primitiva de evolução. E, embora esse período tenha durado, provavelmente, muitos
milênios, não podemos demonstrar sua existência baseando-nos em testemunhos diretos; mas, se admitimos
que o homem procede do reino animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado transitório.

2-FASE MÉDIA. Começa com o emprego dos peixes (incluímos aqui também os crustáceos, moluscos e
outros animais aquáticos ) na alimentação e com o uso do fogo, Os dois fenômenos são comentares, porque o
peixe só pode ser plenamente empregado como alimento graças ao fogo. Com esta nova alimentação, porém,
os homens fizeram-se independentes do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas amares,
puderam,- ainda no estado selvagem, espalhar-se sobre a maior parte da superfície da Terra. Os toscos
instrumentos de pedra sem polimento da primitiva Idade da Pedra, conhecidos com o nome de paleolíticos,
pertencem todos, ou a maioria deles, a esse período e se encontram espalhados por todos os continentes,
constituindo uma prova dessas migrações. O povoamento de novos lugares e o incessante afã de novos
descobrimentos, ligados à posse do fogo, que se obtinha pelo atrito, levaram ao emprego de novos alimentos,
como as raízes e os tubérculos farináceos, cozidos em cinza quente ou em buracos no chão, e também a caça,
que, com a invenção das primeiras armas - a clava e a lança - chegou a ser um ali
mento suplementar ocasional. Povos exclusivamente caçadores, como se afirma nos livros, quer dizer, povos
que tenham vivido apenas da caça, jamais existiram, pois os frutos da mesma eram demasiado problemáticos.
Como conseqüência da incerteza quanto às fontes de alimentação, parece ter nascido, nessa época, a
antropofagia, para subsistir por muito tempo. Nessa fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda em
nossos dias, os australianos e diversos polinésios.

3- FASE SUPERIOR. Começa com a invenção do arco e da flecha, graças aos quais os animais caçados vem
a ser um alimento regular e a caça uma das ocupações normais e costumeiras. O arco, a corda e a seta já
constituíam um instrumento bastante complexo, cuja invenção pressupõe larga experiência acumulada e
faculdades mentais desenvolvidas, bem como 0 conhecimento simultâneo de diversas outras invenções. Se
comparamos os povos que conhecem o arco e a flecha, mas ignoram a arte da cerâmica ( com a qual, segundo
Morgan, começa a passagem à barbárie), encontramos já alguns indícios de residência fixa em aldeias e certa
habilidade na produção de meios de subsistência, vasos e utensílios de madeira, o tecido a mão (sem tear)
com fibras de cortiça, cestos de cortiça ou junco trançados, instrumentos de pedra polida (neolíticos). Na
maioria dos casos, o fogo e o machado de pedra já permitiam a construção de pirogas feitas com um só
tronco de árvore e, em certas regiões, a feitura de pranchas e vigas necessárias à edificação de casas. Todos
esses progressos são encontrados, por exemplo, entre os índios do noroeste da América, que conheciam o arco e a flecha, mas não a cerâmica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o que a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de fogo para a civilização: a arma decisiva.

I - A Barbárie

1- FASE INFERIOR. Inicia-se com a introdução da cerâmica. É possível demonstrar que, em muitos casos,
provavelmente em todos os lugares, nasceu do costume de cobrir com argila os cestos ou vasos de madeira, a
fim de torná-los refratários ao fogo; logo descobriu-se que a argila moldada dava o mesmo resultado, sem
necessidade do vaso interior.
Até aqui, temos podido considerar o curso do desenvolvimento como um fenômeno absolutamente
geral, válido em determinado período para todos os povos, sem distinção de lugar. Mas, com a barbárie,
chegamos a uma época em que se começa a fazer sentir a diferença de condições naturais entre os dois
grandes continentes. O traço característico do período da barbárie é a domesticação criação de animais e o
cultivo de plantas. Pois bem: o continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais
domesticáveis e todos os cereais próprios para o cultivo, exceto um; o continente ocidental, a América, só
tinha um mamífero domesticável, a lhama,-- e, mesmo assim, apenas numa parte do sul - e um só dos cereais
cultiváveis, mas o melhor, o milho. Em virtude dessas condições naturais diferentes, a partir desse momento
a população de cada hemisfério se desenvolve de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre
as várias fases são diferentes em cada um dos dois casos, irrigação e com p emprego do tijolo cru (secado ao
Sol) e da pedra nas construções.
Comecemos pelo Oeste, porque, nessa região, essa fase não tinha sido superada, em parte alguma, até
a conquista da América pelos europeus.
Entre os índios da fase inferior da barbárie ( figuram aqui todos os que vivem a leste do Mississipi)
existia, já na época de seu descobrimento, algum cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e de outras
plantas de horta, que constituíam parte muito essencial de sua alimentação; eles viviam em casas de madeira,
em aldeias protegidas por paliçadas. As tribos do Noroeste, principalmente as do vale do rio Colúmbia,
achavam-se, ainda, na fase superior do estado selvagem e não conheciam a cerâmica nem ó mais simples
cultivo de plantas. .Ao contrário, os índios dos chamados pueblos" no Novo México, os mexicanos, os
centro-americanos e os peruanos da época da conquista; achavam-se na fase média da barbárie; viviam em
casas de adobe ou pedra em forma de fortalezas; cultivavam em plantações artificialmente irrigadas o milho e
outros vegetais comestíveis, diferentes de acordo com o lugar e o clima, que eram a sua principal fonte de
alimentação; e tinham até domesticado alguns animais: os mexicanos, o peru e outras aves; os peruanos, a
lhama. Sabiam, além disso, trabalhar os metais, exceto o ferro; - por isso ainda não podiam prescindir de suas
armas e instrumentos de pedra. A conquista espanhola cortou completamente todo desenvolvimento
autônomo ulterior.
No Leste, a fase média da barbárie começou com a domesticação de animais para o fornecimento de
leite e carne, enquanto que, segundo parece, o cultivo de plantas permaneceu desconhecido ali até bem
adiantada esta fase. A domesticação de animais, a criação de gado e a formação de grandes rebanhos parecem
ter sido a causa de que os arianos e semitas se afastassem dos demais bárbaros. Os nomes com que os arianos
da Europa e os da Ásia designam os animais ainda são comuns, mas os nomes com que designam as plantas
cultivadas são quase sempre diferentes.
A formação de rebanhos levou, nos lugares adequados, à vida pastoril; os semitas, nas pradarias do
Tibre e do Eufrates; os arianos, nos campos da Índia, de Oxus e Jaxartes, do Don e do Dniepr. Foi, pelo visto,
nessas terras ricas em pastos que, pela. primeira vez, se conseguiu domesticar animais. Por isso, parece às
gerações posteriores que os povos pastores procediam de áreas que, na realidade, longe de terem sido o berço
do gênero humano, eram quase inabitáveis para os seus selvagens avós e até para os homens da fase inferior
da barbárie. E, ao contrário, desde que esses bárbaros da fase média se habituaram à vida pastoril, jamais lhes
ocorreria a idéia de abandonarem voluntariamente as pradarias onde viviam seus antepassados. Nem mesmo
quando foram impelidos para o Norte e para o Oeste, puderam os semitas e os arianos se retirar para as
regiões florestais do oeste da Ásia e da Europa antes que o cultivo de cereais, neste solo menos favorável, -
lhes permitisse alimentar seus rebanhos, sobretudo no inverno. É mais do que provável que o cultivo de
cereais nascesse aqui, primeiramente, da necessidade de proporcionar forragem aos animais, e que só mais
tarde tivesse importância para a alimentação do homem.
Talvez a evolução superior dos arianos e dos semitas se deva à abundância de carne e leite em sua
alimentação e, particularmente, pela benéfica influência desses alimentos no desenvolvimento das crianças.
Com efeito, os índios "pueblos" do Novo México, que se veem reduzidos a uma alimentação quase
exclusivamente vegetal, têm o cérebro menor que o dos índios da fase inferior da barbárie, que comem mais
carne e mais peixe. Em todo caso, nessa fase desaparece, pouco a pouco, a antropofagia, que não sobrevive
senão como um rito religioso, ou como um sortilégio, o que dá quase no mesmo.

FASE SUPERIOR. Inicia-se com a fundição do minério de ferro, e passa à fase da civilização com a
invenção a escrita alfabética e seu emprego para registros literários. Essa fase, que, como dissemos, só existiu
de maneira independente no hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto aos progressos da
produção. A ela pertencem os gregos da época heroica, as tribos ítalas de pouco antes da fundação de
Roma, os germanos de Tácito, os normandos do tempo dos vikings.
Antes de mais nada, encontramos aqui, pela primeira vez, o arado de ferro. puxado por animais, o que
torna possível lavrar a terra em grande escala. - a agricultura - e produz, dentro das condições então
existentes, um aumento praticamente quase ilimitado dos meios de existência; em relação com isso, também
observamos a derrubada dos bosques e sua transformação em pastagens e terras cultiváveis, coisa impossível
em grande escala sem a pá e o machado de ferro. Tudo isso acarretou um rápido aumento da população, que
se instala, densamente, em pequenas áreas. .Antes do cultivo dos campos somente circunstâncias
excepcionais teriam podido reunir meio milhão de homens sob uma direção central - e é de se crer que isso
jamais tenha acontecido.
Nos poemas homéricos, principalmente na Ilíada, encontramos a época mais florescente da fase
superior da barbárie. A principal herança que os gregos levaram da barbárie para a civilização é constituída
dos instrumentos de ferro aperfeiçoados, dos foles de forja, do moinho a mão, da roda de olaria, da
preparação do azeite e o vinho, do trabalho de metais elevado à categoria de arte, de carretas e carros de
guerra, da construção de barcos com pranchas e vigas, dos princípios de arquitetura como arte, das cidades
amuralhadas com torres e ameias, das epopeias homéricas e de toda a mitologia. Se compararmos com isso as
descrições feitas por César, e até por Tácito, dos germanos, que se achavam nos umbrais da fase de cultura da
qual os gregos de Homero se dispunham a passar para um estágio mais elevado, veremos como foi
esplêndido o desenvolvimento da produção na fase superior da barbárie.
O quadro do desenvolvimento da humanidade através do estado selvagem e da barbárie, até os
começos da civilização - quadro que acabo de esboçar, seguindo Morgan - já é bastante rico em traços
característicos novos e, sobretudo, indiscutíveis, porquanto diretamente tirados da produção. No entanto,
parecerá obscuro e incompleto se o compararmos com aquele que se há de descortinar diante de nós, ao fim
de nossa viagem; só então será possível apresentar com toda a clareza a passagem da barbárie à civilização e
o forte contraste entre as duas. Por ora, podemos generalizar a classificação de Morgan da forma seguinte:
Estado Selvagem. - Período em que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para ser
utilizados; as produções artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação.
Barbárie. - Período em que aparecem a criação de gado e a agricultura, e se aprende a incrementar a produção
da natureza por meio do trabalho humano. Civilização - Período em que o homem continua aprendendo a
elaborar os produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.

II – A FAMILIA

Morgan, que passou a maior parte de sua vida entre os iroqueses - ainda hoje estabelecidos no Estado
de Nova York - e foi adotado por uma de suas tribos ( a dos senekas ) encontrou um sistema de
consangüinidade, vigente entre eles, que entrava em contradição com seus reais vínculos de família. Reinava
ali aquela, espécie de matrimônio facilmente dissolúvel por ambas as partes, que Morgan chamava "família
sindiásmica". A descendência de semelhante casal era patente e reconhecida por todos; nenhuma dúvida
podia surgir quanto às pessoas a quem se aplicavam os nomes de pai, mãe, filho, filha, irmão ou irmã. Mas, o
uso atual desses nomes constituía uma contradição. O iroquês não somente chama filhos e filhas aos seus
próprios, mas, ainda, aos de seus irmãos, os quais, por sua vez, o chamam pai. Os filhos de suas irmãs; pelo
contrário, ele os trata como sobrinhos e sobrinhas, e é chamado de tio por eles. Inversamente, a iroquesa
chama filhos e filhas os de suas irmãs, da mesma forma que os próprios, e aqueles, como estes, chamam-na
mãe. Mas chama sobrinhos e sobrinhas os filhos de seus irmãos, os quais a chamam de tia. Do mesmo modo,
os filhos de irmãos tratam-se, entre si, de irmãos e irmãs, e o mesmo fazem os filhos de irmãs. Os filhos de
uma mulher e os de seu irmão chamam-se reciprocamente primos e primas. E não são simples nomes, mas a
expressão das ideias que se tem do próximo e do distante, do igual ou do desigual no parentesco
consanguíneo; ideias que servem de base a um sistema de parentesco inteiramente elaborado e capaz de
expressai muitas centenas de diferentes relações de parentesco de um único indivíduo. Mais ainda: esse
sistema se acha em vigor não apenas entre todos os índios da América ( até agora não foram encontradas
exceções), como também existe, quase sem nenhuma modificação, entre os aborígines da índia, as tribos
dravidianas do Dekan e as tribos gauras do Indostão. As expressões de parentesco dos tamilas do sul da índia
e dos senekas-iroqueses do Estado de Nova York ainda hoje coincidem em mais de duzentas relações de
parentesco diferentes. E, nessas tribos da índia, como entre os índios da América, as relações de parentesco
resultantes da vigente forma de família estão em contradição com o sistema de parentesco.
Como explicar esse fenômeno ? Se tomamos em consideração o papel decisivo da consanguinidade no
regime social de todos os povos selvagens e bárbaros, á importância de tão difundido sistema não pode ser
explicada com mero palavreado. Um sistema que prevalece em toda a América, que existe na Ásia em povos
de raças completamente diferentes, e do qual se encontram formas mais ou menos modificadas por toda parte
na África e na Austrália, precisa ser explicado historicamente - e não com frases ocas, como quis fazer, por
exemplo, Mac Lennan. As designações "pai", "filho", "irmão", "irmã", não são simples títulos honoríficos,
mas, ao contrario, implicam em sérios deveres recíprocos, perfeitamente definidos, e cujo conjunto forma
uma parte essencial do regime social desses povos. E a explicação foi encontrada. Nas ilhas Sandwich (
Havaí ), ainda havia, na primeira metade deste século, uma forma de família em que existiam os mesmos pais
e mães, irmãos e irmãs, filhos e filhas, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas do sistema de parentesco dos índios
americanos e dos aborígines da índia. Mas - coisa estranha - o sistema de parentesco em vigor no Havaí
também não correspondia à forma de família ali existente. Nesse país, todos os filhos de irmãos e irmãs, sem
exceção, são irmãos e irmãs entre si e são considerados filhos comuns, não só de sua mãe e das irmãs dela, ou
de seu pai e dos irmãos dele, mas também de todos os irmãos e irmãs de seus pais e de suas mães, sem
distinção. Portanto, se o sistema americano de parentesco pressupõe uma forma de família mais primitiva -
que não existe mais na América, mas que ainda encontramos no Havaí - o sistema havaiano, por seu lado, nos
indica uma forma de família ainda mais rudimentar, que, se bem que não seja encontrada hoje em parte
alguma, deve ter existido, pois, do contrário, não poderia ter nascido o sistema de parentesco que a ela,
corresponde. "A família", diz Morgan, "é o elemento ativo; nunca permanece estacionaria, mas passa de uma
forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais
elevado. Os sistemas de parentesco, elo contrário, são passivos só depois de longos intervalos, registram os
progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou
radicalmente." Karl Marx acrescenta: "O mesmo acontece, em geral, com os sistemas políticos, jurídicos,
religiosos e filosóficos:" Ao passo que a família prossegue vivendo, o sistema de parentesco se fossiliza; e,
enquanto este continua de pé pela força do costume, a família o ultrapassa. Contudo, pelo sistema de
parentesco que chegou historicamente até nossos dias, podemos concluir que existiu uma forma de' família a
ele correspondente e hoje extinta, e podemos tirar essa conclusão com a mesma segurança com que Cuvier,
pelos ossos do esqueleto de um animal achados perto de Paris, pôde concluir que pertenciam a um marsupial
e que os marsupiais, agora extintos, ali viveram antigamente.
Os sistemas de parentesco e formas de família, a que nos referimos, difere dos de hoje no seguinte:
cada filho tinha vários pais e mães. No sistema americano de parentesco, ao qual corresponde a família
havaiana, um irmão e uma irmã não podem ser pai e mãe de um mesmo filho; o sistema de parentesco
havaiano, pelo contrário, pressupõe uma família em que essa é a regra. Encontramo-nos frente a uma série de
formas de família que estão em contradição direta com as até agora admitidas como únicas válidas. A
concepção tradicional conhece apenas a monogamia, ao lado da poligamia de um homem e talvez da
poliandria de uma mulher, silenciando como convém ao filisteu moralizante - sobre ó fato de que na prática
aquelas barreiras impostas pela sociedade oficial são tácita e inescrupulosamente transgredidas. O estudo da
história primitiva revela-nos, ao invés disso, um estado de coisas em que os homens praticam a poligamia e
suas mulheres a poliandria, e em que, por consequência, os filhos de uns e outros tinham que ser
considerados comuns. É esse estado de coisas, por seu lado, que, passando por uma série de transformações,
resulta na monogamia. Essas modificações são de tal ordem que o círculo compreendido na união conjugal
comum, e que era muito amplo em sua origem, se estreita pouco a pouco até que, por fim, lado, que
predomina hoje.
Reconstituindo retrospectivamente a história da família, Morgan chega, de acordo com a maioria de
seus colegas, à conclusão de que existiu uma época primitiva em que imperava, no seio da tribo, o comércio
sexual promíscuo, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas
as mulheres. No século passado, já se havia feito menção a esse estado primitivo, mas apenas de modo geral;
Bachofen foi o primeiro - e este é um de seus maiores méritos - que o levou a sério e procurou seus vestígios
nas tradições históricas e religiosas. Sabemos hoje que os vestígios descobertos por ele não conduzem a
nenhum estado social de promiscuidade dos sexos e sim a uma forma muito posterior: o matrimônio por
grupos. Aquele estado social primitivo, admitindo-se que tenha realmente existido, pertence a uma época tão
remota que não podemos esperar encontrar provas diretas de sua existência, nem mesmo entre os fósseis
sociais, nos selvagens mais atrasados. É precisamente de Bachofën o- mérito de ter posto no primeiro plano o
estudo dessa questão.
Ultimamente, passou a ser moda negar esse período inicial na vida sexual do homem. Pretendem
poupar à humanidade essa "vergonha". E, para isso, apoiam-se não apenas na falta de provas diretas, mas,
principalmente, no exemplo do resto do reino animal. Neste, Letourneau (A Evolução do Matrimônio e da
Família, 1888 ) foi buscar numerosos fatos, de acordo com os quais a promiscuidade sexual completa só é
própria das espécies mais inferiores. Mas, de todos esses fatos só posso tirar uma conclusão: não provam
coisa alguma quanto ao homem e suas primitivas condições de existência. A união por longo tempo entre os
vertebrados pode ser explicada, de modo cabal, por .motivos fisiológicos; nas aves, por exemplo, deve-se à
necessidade de proteção á. fêmea enquanto esta choca os ovos; os exemplos de fiel monogamia que se
encontram entre ás aves nada provam quanto ao homem, pois o homem não descende da ave. E, se a estrita
monogamia é o ápice da virtude, então a palma deve ser dada ,á tênia solitária que, em cada um dos seus
cinquenta a duzentos anéis, possui um aparelho sexual masculino e feminino completo, e passa a vida inteira
coabitando consigo mesma em cada um desses anéis reprodutores.
Mas, se nos limitarmos aos mamíferos, neles encontramos todas as formas de vida sexual: a
promiscuidade, a união por grupos, a poligamia, a monogamia; só falta a poliandria, à qual apenas os seres
humanos podiam chegar. Mesmo nossos parentes mais próximos, os quadrúmanos, apresentam todas as
variedades possíveis de ligação entre machos e fêmeas; e se nos restringirmos a limites ainda mais estreitos,
considerando exclusivamente as quatro espécies de macacos antropomorfos, deles Letourneau só nos pode
dizer que vivem ora na monogamia ora na poligamia; ao passo que Saussure, segundo Giraud-Teulon,
declara que são monógamos. Ficam longe de qualquer prova, também, as recentes assertivas de Westermarck
( A História do Matrimônio Humano, 1891) sobre a monogamia do macaco antropomorfo. Em resumo, os
dados são de tal ordem que o honrado Letourneau está de acordo em que "não há nos mamíferos relação
alguma entre o grau de desenvolvimento intelectual e á forma de união sexual". E, Espinal ( As Sociedades
Animais, 1877 ) diz, com franqueza: "A horda é o mais elevado dos grupos sociais que pudemos observar
nos animais. Parece composta de famílias, mas, já em sua origem, a família e a horda são antagônicas,
desenvolvem-se em razão inversa uma da outra:
Pelo que acabamos de ver, nada de positivo sabemos sobre a família e outros agrupamentos sociais
dos macacos antropomorfos; os dados que possuímos contradizem-se frontalmente e não há por que estranhá-los.
Como são contraditórias, e necessitadas de serem examinadas e comprovadas criticamente, as notícias
que temos das tribos humanas no estado selvagem! Pois bem, as sociedades dos macacos são muito mais
difíceis de observar que as dos homens. Por isso, enquanto não dispusermos de uma informação ampla,
devemos recusar qualquer conclusão provinda de dados que não inspirem crédito.
Entretanto, o trecho de Espinal que citamos nos dá melhor ponto de apoio para investigação. A horda
e a família, nos animais superiores, não são complementos recíprocos e sim fenômenos antagônicos. Espinal
descreve bem de que modo o ciúme dos machos no período do cio relaxa ou suprime momentaneamente os
laços sociais da horda. "Onde a família está intimamente unida, não vemos formarem-se hordas, salvo raras
exceções. Pelo contrário, as hordas constituem-se quase que naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a
poligamia... Para que surja a horda, é necessário que os laços familiares se tenham relaxado e o indivíduo
tenha recobrado sua liberdade. É por. isso que só raramente encontramos bandos organizados entre os
pássaros... Por outro lado, é nos mamíferos que vamos encontrar sociedades mais ou menos organizadas,
justamente porque o indivíduo neste caso não é absorvido pela família... Assim, pois, a consciência coletiva
da horda não pode ter em sua origem um inimigo maior do que a consciência coletiva da família. Não
hesitamos em dizê-lo: se se desenvolveu uma sociedade superior à família, isso foi devido somente ao fato de
que a ela se incorporaram famílias profundamente alteradas, conquanto isso não exclua a possibilidade de
que, precisamente por este motivo, aquelas famílias pudessem mais adiante reconstituir-se sob condições
infinitamente mais favoráveis." (Espinal, cap. 1, citado por Giraud-Teulon em Origens do Matrimônio e da
Família, 1884, págs. 518/520).
Como vemos, as sociedades animais têm certo valor para tirarmos conclusões concernentes às
sociedades humanas, mas somente num sentido negativo. Pelo que é de nosso conhecimento, o vertebrado
superior apenas conhece duas formas de família: a poligâmica e a monogâmica. Em ambos os casos só se
admite um macho adulto, um marido. Os ciúmes do macho, a um só tempo laço e limite da família, opõemna
à horda; a horda, forma social mais elevada, torna-se impossível em certas ocasiões, e em outras, relaxa-se
ou se dissolve durante o período do cio; na melhor das hipóteses, seu desenvolvimento vê-se contido pelos
ciúmes dos machos. Isso é suficiente para provar que a família animal e a sociedade humana primitiva são
coisas incompatíveis; que os homens primitivos, na época em que lutavam por sair da animalidade, ou não
tinham nenhuma moção de família ou, quando muito, conheciam uma forma não encontrada entre animais.
Um animal tão sem meios de defesa como aquele que se estava tornando homem pôde sobreviver em
pequeno número, inclusive numa situação de isolamento, em que a forma de sociabilidade mais evoluída era
o casal, forma que Westermarck, baseando-se em informações de caçadores, atribui ao gorila e ao chipanzé.
Mas, para sair da animalidade, para realizar o maior progresso que a natureza conhece, era preciso mais um
elemento: substituir a falta de poder defensivo do homem isolado pela. união de forças e pela ação comum da
horda. Partindo das condições conhecidas em que vivem hoje os macacos antropomorfos, seria simplesmente
inexplicável a passagem à humanidade; esses macacos dão-nos mais a impressão de linhas colaterais
desviadas e em vias de extinguir-se, e que, no mínimo, se encontram em processo de decadência. Isso basta
para se rechaçar todo paralelo entre suas formas de família e as do homem primitivo.
A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de ciúmes constituíram a primeira
condição para que se pudessem formar esses grupos numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente, podia
operar-se a transformação do animal em homem. E, com efeito, que encontramos como forma mais antiga e
primitiva da família, cuja existência indubitável nos demonstra a História, e que ainda hoje podemos estudar
em certos lugares? O matrimônio por grupos, a forma de casamento em que grupos inteiros de homens e
grupos inteiros de mulheres pertencem-se mutuamente, deixando bem pouca margem para os ciúmes. Além
disso, numa fase posterior de desenvolvimento, vamos nos deparar com a poliandria, forma excepcional, que
exclui, em medida ainda maior, os ciúmes, e que, por isso, é desconhecida entre os animais. Todavia, como
as formas de matrimônio por grupos que conhecemos são acompanhadas de condições tão peculiarmente
complicadas que nos indicam, necessariamente, a existência de formas anteriores mais simples de relações
sexuais e assim, em última análise, um período de promiscuidade correspondente á passagem da animalidade
á humanidade, - as referências aos matrimônios animais conduzem-nos, de novo, ao mesmo ponto de onde
devíamos ter partido de uma vez para sempre.
Que significam relações sexuais sem entraves ? Significa que não existiam os limites proibitivos
vigentes hoje ou numa época anterior para essas relações. já vimos caírem as barreiras dos ciúmes. Se algo
pôde ser estabelecido irrefutavelmente, foi que o ciúme é um sentimento que se desenvolveu relativamente
tarde. O mesmo acontece com a ideia de incesto. Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e
mulher, como também, ainda hoje, em muitos povos é lícito o comércio sexual entre pais e filhos. Bancroft
(As Raças Nativas dos Estados da Costa do Pacífico na América do Norte, 1875, tomo 1) testemunha a
existência dessas relações entre os kadiakos do Estreito de Behring, os kadiakos das cercanias do Alasca e os
tinnehs do interior da América do Norte inglesa; Letourneau reuniu numerosos fatos idênticos entre os índios
chipevas, os kukus do Chile, os caribes, os karens da Indochina; e isso deixando de lado o que contam os
antigos gregos e romanos a respeito dos partos, dos persas, dos citas e dos hunos, etc. Antes da invenção do
incesto (porque é uma invenção e das mais valiosas), o comércio sexual entre pais e filhos não podia ser mais
repugnante que entre outras pessoas de gerações diferentes, coisa que ocorre em nossos dias até nos países
mais beatos, sem produzir grande horror. Velhas "donzelas" de mais de setenta anos casam-se, se são
bastante ricas, com jovens de uns trinta anos. Mas, se despojarmos as formas de família mais primitivas que
conhecemos das concepções de incesto que lhes correspondem ( concepções completamente diferentes das
nossas e muitas vezes em contradição direta com elas), chegaremos a uma forma de relações carnais que só
pode ser chamada de promiscuidade sexual, no sentido de que ainda não existiam as restrições impostas mais
tarde pelo costume. Mas disso não se deduz, de modo algum, que na prática cotidiana imperasse
inevitavelmente a promiscuidade. As uniões temporárias por pares não ficam excluídas, em absoluto, e
ocorrem, na maioria dos casos, mesmo no matrimônio por grupos. E se Westermarck, o último a negar esse
estado primitivo, dá o nome de matrimônio a todo caso em que os dois sexos convivem até o nascimento de
um pimpolho, pode-se dizer que tal matrimônio podia muita bem verificar-se nas condições da
promiscuidade sexual sem contradizê-la em nada, isto é, sem contradizer a inexistência de barreiras impostas
pelo costume às relações sexuais. É verdade que Westermarck parte do ponto de vista de que "a
promiscuidade supõe a supressão das inclinações individuais", de tal sorte que "sua forma por excelência é a
prostituição". Parece-me, ao contrário, que será impossível formar a menor ideia das condições primitivas
enquanto elas forem observadas através da janela de um lupanar. Voltaremos a falar desse assunto quando
tratarmos do matrimônio por grupos.
Segundo Morgan, desse estado primitivo de promiscuidade, provavelmente bem cedo, formaram-se: e
avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entre si: o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer,
com os pais e mães; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns; e seus
filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto círculo. Nessa forma de família, os ascendentes e
descendentes, os pais e filhos, são os únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres
(poderíamos dizer) do matrimônio. Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus,
são todos, entre si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vínculo de irmão
e irmã pressupõe, por si, nesse período, a relação carnal mútua.
Exemplo típico de tal família seriam descendentes de um casal, em cada uma de cujas gerações
sucessivas todos fossem entre si irmãos e irmãs e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros.
A família consangüínea desapareceu. Nem mesmo os povos riais atrasados de que fala a história
apresentam qualquer exemplo seguro dela. Mas o que nos obriga a reconhecer que ela deve ter existido é o
sistema de parentesco havaiano, ainda vigente em toda a Polinésia, e que expressa graus de parentesco
consanguíneo que só puderam surgir com essa forma de família; e somos levados d mesma conclusão por
todo o desenvolvimento ulterior da família, que pressupõe essa forma como estágio preliminar necessário.



Próximo  capítulo: A FAMÍLIA PUNALUANA

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