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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Velhos fantasmas do século XIX ainda conduzem a política

 

          
Publicado originalmente em Carta Maior

Tenho ouvido militantes de esquerda culparem o PT pela desmobilização da sociedade brasileira. Por ser governo, o PT bloquearia a mobilização. Trata-se de um equívoco. A sociedade brasileira está desmobilizada porque não existe no espectro político uma proposta consistente de destino nacional. Ainda somos escravos dos antigos pensadores do século XIX em pleno século XXI.



     

Keynes dizia que todo político atuante é em geral, do ponto de vista ideológico, escravo de um economista defunto. Pode-se generalizar esse enunciado, no sentido de que somos todos, de uma maneira geral, fortemente influenciados por grandes pensadores do passado. O principal deles, sem paralelo, é Karl Marx. Todo partido de esquerda, desde a ala extrema bolchevista ao centrismo democrata cristão, presta algum tipo de tributo a Marx, mesmo quando não subscreve inteiramente suas teorias.

A razão para isso é óbvia: Marx é de uma simplicidade brutal. Não por acaso. Ele examinou uma sociedade também relativamente simples. Era uma sociedade de duas classes principais, dinâmicas (os camponeses ficavam de fora), os burgueses e os trabalhadores, identificadas cada uma delas por sua posição em relação aos meios de produção, dos quais uma era a dona absoluta e a outra totalmente alienada. Em razão de tal divisão essas classes tinham objetivos bem definidos, os quais se expressavam em conflitos inconciliáveis.

A economia subjacente a essa análise social deve seu principal desenvolvimento ao conceito de mais valia. As mercadorias, dizia Marx, são trocadas pelos seus valores de reprodução, definidos este pelo conteúdo de trabalho nelas incorporado. Havia, porém, uma mercadoria em especial – a força de trabalho – que produzia um valor acima de seu valor de reprodução. A diferença entre o valor da mercadoria produzida e seu custo em conteúdo de trabalho seria a mais valia. Esta era integralmente apropriada pela burguesia.

O que continua válido nessas teses aqui simplificadas? Muito pouca coisa. Kautsky e Bernstein já haviam advertido, na segunda década do século passado, que estava em progresso uma diferenciação social nova entre a classe trabalhadora e a burguesia: as classes médias. Gramsci, na década seguinte, propôs corajosamente o conceito de uma classe intermediária que tinha objetivos próprios e poderia influir fortemente no curso da luta política. Os dois primeiros foram considerados renegados pelos marxistas ortodoxos. Gramsci foi menos repudiado, talvez porque escreveu da prisão e morreu jovem.

Sem uma releitura consistente da realidade social contemporânea, grande parte dos partidos de esquerda caíram no misticismo operário, saudosista do tempo em que uma revolução proletária deveria resolver todas as contradições da política e da vida. Não se deu conta que o próprio movimento operário voltou-se cada vez mais para a defesa de seus próprio interesses específicos, abandonando a via revolucionária. Por seu turno as classes médias ou classes intermediárias também assumiram seus próprios interesses corporativos sem muita consideração com o interesse geral. Mais do que isso, a conquista de direitos de cidadania possibilitou às classes não proprietárias apropriar-se de parte da mais valia social mediante a disputa do orçamento público nas democracias.

Tudo isso é um dado da realidade presente, impossível de negar. Não é uma tragédia. Mesmo a busca de afirmação de interesses corporativos nem sempre afronta o interesse geral. Além disso, há momentos especiais – eleições gerais, grandes movimentos cívicos por uma causa pública – em que, contra tudo e contra todos, surge uma mobilização social em larga escala por cima de interesses corporativos. Recorde-se, no Brasil, o apoio popular às greves do ABC em 78, a campanha das diretas-já e a deposição de Collor. Nos Estados Unidos, só para dar um exemplo externo, recorde-se a campanha pelos direitos civis nos 60 e o verdadeiro levante estudantil contra a guerra no Vietnã a partir de 68, atingindo também a Europa.

O que não se há de esperar, sobretudo numa sociedade democrática, é um estado permanente de mobilização social apoiada em interesses corporativos pressionando as instituições. Ninguém pode se mover permanentemente ao ritmo da Cavalaria Rusticana. A sociedade seria levada a um estado extremo de stress. Tivemos algo parecido no fim do Governo Goulart: o resultado foi prevalência da direita sob o signo da restauração da ordem.

Já uma genuína mobilização de massas que coloca acima ou além dos interesses corporativos o interesse geral requer uma acumulação de forças a partir de objetivos bem claros capazes de sensibilizar o imaginário popular. Sem a ideia da liberdade, não haveria revolução francesa; sem a ideia da igualdade comunista, não haveria a revolução russa; sem a ideia de uma terceira via social entre democracia e comunismo, não haveria social democracia europeia. Em uma palavra, a sociedade sem um projeto nacional é como navegar à noite entre pedras sem um farol de orientação.

Tenho ouvido muitos militantes de esquerda culparem o PT pela desmobilização da sociedade brasileira. Por ser governo, o PT bloquearia a mobilização. Trata-se de um equívoco. A sociedade brasileira está desmobilizada porque não existe ao longo de todo o espectro político uma proposta consistente de destino nacional. Todos, governo e sociedade, estão trabalhando para o curto prazo e de forma fragmentária. Não apenas o PT, mas todos os partidos, inclusive os de direita, não oferecem uma perspectiva de sociedade pela qual valha a pena se mobilizar. Enquanto essa proposta não for formulada, continuaremos escravos dos antigos pensadores do século XIX em pleno século XXI.

*J. Carlos de Assis é economista, professor de economia internacional da UEPB e autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus” (ed. Civilização Brasileira).

 


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